UMA REVISÃO DO TRIBUTO E DO SEU ESTADO DA ARTE:
OS CAMINHOS PARA A PÓS-MODERNIDADE
A REVIEW OF THE TAX AND ITS STATE OF ART:
THE PATHS TO THE POS-MODERNITY
Maurin Almeida Falcão1
Recebido: 23/07/2018
Aprovado: 11/10/2018
RESUMO: Este artigo tem como objetivo estabelecer uma argumentação em torno do tributo a partir dos pressupostos da pós-modernidade, onde se coloca em questão o debate contemporâneo sobre a construção de uma nova percepção da justiça fiscal. Com efeito, como supedâneo da modernidade, em um momento marcado pela emergência do Estado intervencionista, destacou-se como importante meio de solidariedade que marcou a sociedade pós-Revolução Industrial. Uma vez preenchido o vazio social e consolidados os valores da justiça e da democracia, no transcorrer do conturbado Século XX, a justiça fiscal passou a ser questionada em face da eclosão dos novos eventos sociopolíticos que marcaram a ordem internacional do pós-guerra. Desse modo, a permeabilidade dos sistemas tributários em um quadro marcado pela forte internacionalização da economia e pela mobilidade da riqueza levou a novo perfil da justiça fiscal. O deslocamento inexorável das bases tributáveis impôs uma revisão dos conceitos tradicionais da justiça fiscal e determinou uma nova estrutura dos sistemas tributários contemporâneos, colocando-os na zona cinzenta da pós-modernidade. Esse movimento, ainda em construção, evidencia uma ruptura com os valores do passado materializado na flexibilização das estruturas sociais. A partir da pesquisa bibliográfica e do método hipotético-dedutivo, esse trabalho evidencia as variáveis incidentes sobre a reformulação dos cânones da justiça fiscal em um momento de transição social.
Palavras-chave: Tributo. Contemporaneidade. Justiça fiscal. Pós-modernidade.
ABSTRACT: This article aims to establish an argument about the tax from the assumptions of postmodernity, where the contemporary debate on the construction of a new perception of tax justice is questioned. In fact, as a subject of modernity, at a time marked by the emergence of the interventionist state, it stood out as an important means of solidarity that marked the post-Industrial Revolution society. Once the social void has been filled and the values of justice and democracy consolidated in the troubled 20th century, tax justice has been questioned in the face of the outbreak of new socio-political events that have marked the post-war international order. Thus, the permeability of tax systems within a framework marked by the strong internationalization of the economy and the mobility of wealth has led to a new profile of fiscal justice. The inexorable displacement of the tax bases imposed a revision of the traditional concepts of tax justice and determined a new structure of contemporary tax systems, placing them in the gray zone of postmodernity. This movement, still under construction, shows a rupture with the values of the past materialized in the flexibilization of social structures. Based on bibliographical research and the hypothetical-deductive method, this paper shows the variables involved in the reformulation of the fiscal justice canons at a time of social transition.
Keywords: Tax. Contemporaneity. Tax justice. Postmodernity.
1 INTRODUÇÃO
Na esteira da evolução social, o tributo sempre se fez presente ao marcar as etapas do desenvolvimento da civilização, da democracia, das liberdades e do próprio Estado moderno. Por ser um notável fato social sempre esteve atrelado à evolução sociopolítica, tendo marcado diversas etapas do progresso humano. Por isso, refletiu as organizações sociais incipientes, marcadas pela dominação, pela espoliação, pela submissão ao senhor feudal, passou pelo absolutismo até ganhar os contornos próprios de uma sociedade democrática. No descortinar da sociedade pós-Revolução Industrial, compôs as correntes positivistas em busca das bases da sociedade solidária e sustentou o lançamento do Estado intervencionista.
A partir de então, se firmou como sendo indissociável do Estado moderno e contribuiu para a coesão social. Tornou-se ainda, um importante instrumento para o financiamento do Estado fiscal e, por esta razão, foi visto como instrumento de reforma social ao acolher a noção de justiça e de igualdade. No transcorrer do Século XX, compôs o cenário keynesianista e a reconstrução da ordem internacional do pós-guerra. Ao final dos Trinta Gloriosos, teve o seu papel realçado, todavia, em um contexto marcado pelo declínio do Estado intervencionista. Por conseguinte, os valores adquiridos no passado passaram a ser contestados juntamente com a noção de justiça fiscal e de outros cânones da equidade e da eficiência. A mobilidade das bases tributáveis em um cenário marcado pela globalização financeira e outras formas de flexibilização da ordem internacional acabaram por mitigar a noção de justiça fiscal e a criar regimes fiscais favoráveis, o que levou ao tratamento diferenciado de contribuintes. A este quadro inexorável, foi considerado no artigo, a ação de determinados segmentos sociais em busca de melhores posição na redistribuição da riqueza social, como por exemplo, a obtenção de regimes fiscais favoráveis, a manipulação do sistema legal e de outras formas que contradizem os valores da justiça fiscal.
No portal da pós-modernidade, deparou-se com um estado de letargia fiscal em decorrência do processo de criação, talvez, de uma nova identidade cultural, reforçado pelo desapego ao passado e por uma espécie de laissez-faire social. Desse modo, os sistemas tributários passaram por uma importante transformação, desce a consolidação dos Estados sociais do pós-guerra, passando pelo incremento da globalização financeira e pela mobilidade das bases tributáveis, até a primazia absoluta dos impostos indiretos e regressivos na atualidade.
A modernidade foi marcada pelo rompimento com a sociedade antiga, no século das luzes, onde a afirmação da democracia e dos direitos sociais evidenciou a ruptura com o passado sombrio do feudalismo e do absolutismo. Esse período findaria em meados da década de 1980, tendo a queda do muro de Berlin como divisor de águas. Por sua vez, o conceito de pós-modernidade ainda em construção, significaria a falência da modernidade e o advento de novos padrões os quais lançaria a humanidade em uma nova etapa da contínua evolução que tem marcado a história. A flexibilização das estruturas sociais e dos comportamentos individuais ainda aguardam uma nova normatização, talvez, impondo a necessidade de uma adequação aos novos tempos, o que levaria a uma nova mudança social, a exemplo do que aconteceu no período pós-Revolução Industrial.
Com o intuito, portanto, de expor o tributo em seus diferentes contextos, esse artigo analisa a contemporaneidade e o estado da arte do ônus fiscal a partir de uma descrição sobre a sua participação na modernidade. Em seguida, tece considerações sobre a justiça fiscal em um contexto marcado pela incidência direta de fatos sociopolíticos responsáveis por diferentes percepções do tributo pela sociedade. Em uma última etapa, o trabalho se volta para o perfil dos atuais sistemas tributários com o objetivo de situá-lo na sua contemporaneidade e para a descrição de pressupostos da pós-modernidade suscetíveis de influenciar as tradicionais relações entre o Estado e o cidadão-contribuinte. Para atingir a finalidade proposta, recorreu-se à pesquisa bibliográfica e ao método hipotético-dedutivo.
2 O TRIBUTO, A SUA CONTEMPORANEIDADE E O SEU ESTADO DA ARTE
Por envolver diversos ramos das ciências sociais aplicadas, como a ciência política, a sociologia, o direito e a economia, o tributo tem sido utilizado para explicar a evolução das diversas formas de organização social, dentre elas, as que culminaram no Estado moderno e democrático. Suas origens se perdem na noite do tempo, sendo que na antiguidade mais remota, formas rudimentares do sacrifício fiscal já eram identificadas. Salanié (2002, p. 04) informa nesse sentido que « Pour autant que nous puissions le savoir, les impôts sont apparus en même temps que la civilsation em Mésopotamie et en Egypte, comme l’attestent des tablettes sumériennes datées de 3500 avant notre ére ». As civilizações da antiguidade, como Roma e Grécia, impunham o fardo fiscal decorrente da vida em sociedade apenas às classes inferiores, traço marcante do tributo desde os seus primórdios. Nesse aspecto, é possível afirmar que esta lógica ainda predominaria no atual panorama sociopolítico mesmo com o viés democrático que caracterizou a passagem da sociedade antiga para a sociedade moderna. De forma inconteste, pode-se afirmar que em face das heranças do passado, a possibilidade de postergação do fardo tributário seja algo inerente ao imposto e que obedece a uma lógica marcada pela dominação. Bouvier (2010, p. 169) assinalou as origens de ordem antropológica, sociológica e econômica encontradas no estudo historiográfico do tributo e destacou também os períodos conturbados pelos quais passou:
La légitimité du pouvoir fiscal est sans aucun doute étroitement liée d’abord aux origines les plus lointaines de l’impôt, et à des formes primitives du prélèvement fiscal nées de déterminismes économiques, politiques et religieux, intervenant le plus souvent sur fond de violence, mais aussi d’échange et de soumission acceptée.
Nas suas origens, o ônus permaneceu estreitamente vinculado às formas de escravidão, de domínio, de espoliação e de submissão até o momento onde a razão e a conveniência democrática viriam a se sobrepor. No crepúsculo do medievo, pôs fim à corveia e outras formas de submissão que caracterizavam a tributação dominial. Na emergência do absolutismo, o imposto compôs o cenário regaliano (tributação voltada para sustentar as regalias do rei) e atenuou, ainda que parcialmente, a opressão registrada no transcurso da era medieval. Não obstante essa constatação inexorável, não há meio de se chegar a uma melhor compreensão da marcha evolutiva da humanidade sem passar pelo crivo do imposto como meio indispensável à eficiência coletiva e à coesão social. Ardant (1965, p. 31) esclareceu nesse sentido que “L’impôt a pu également se dégager par une évolution progressive, à l’intérieur d’un groupe social déterminé”.
2.1 O tributo como importante supedâneo na construção da modernidade
Da perspectiva apontada acima, pode-se afirmar que o imposto sempre se constituiu em traço indelével do lento e contínuo progresso dos núcleos sociais que a história da humanidade conheceu. Por isso, incorporou diferentes modalidades impositivas que, em um determinado momento, espelhavam a ordem econômica, política e social vigente. Na análise da formação sociopolítica que marcou a humanidade, o imposto proporcionou os elementos necessários a uma melhor compreensão das doutrinas e ideologias vigentes, seja a da espoliação, a da dominação ou da democracia, tornando possível estabelecer um melhor conhecimento das etapas do progresso humano. A exação fiscal se manifestou, então, como o meio privilegiado de compreensão do corpo social e das relações estabelecidas em seu interior. Mais tarde, duas revoluções contribuíram de forma significativa para a emergência da modernidade, a Revolução Francesa de caráter político e a Revolução Industrial, de natureza técnica, conforme observou Parsons (1973, p. 78):
C’est à la fin du 18e siècle que débutèrent deux développements formant transition en ces deux changements entre la phase du début de la modernité et celle qui s’est cristallisée au milieu du 20e siècle. On a l’habitude d’appeler “révolution industrielle” et “révolution démocratique”.
De fato, a Revolução Francesa trouxe em sua esteira, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual consagraria os princípios da capacidade contributiva e do consentimento ao imposto, esse último tendo sido contemplado por ocasião da Magna Carta do Rei João sem Terra, na Inglaterra, em 1215. A segunda revolução culminou na mudança social, ao impor transformações que levariam a um novo cenário sociopolítico, marcado pelo advento do Estado intervencionista, pela instauração da grande sociedade solidária, tudo nos intramuros da democracia e da sociedade moderna. Constituiu-se, portanto, em supedâneo à construção do marco inaugural das novas estruturas sociais que caracterizavam a então incipiente sociedade industrial.
Alargados os horizontes políticos e preenchido, ainda que parcialmente, o vazio social, as falhas do mercado liberal dariam lugar ao intervencionismo estatal, o qual viriam assentado no tripé da alocação, da redistribuição e da estabilização. Esse fato daria um novo contorno ao Estado e as suas instituições. Foi nesse contexto que a análise dos fatos sociais ganharia corpo com o positivismo sociológico e as novas formas de produção da riqueza levariam à abertura de uma página importante da economia política, esta vista como ciência da riqueza e da felicidade conforme consignado nos cânones da economia política.
Dado início à modernidade, onde os valores da democracia e da justiça se constituíam na ordem natural do século das luzes, o tributo seria alçado à condição de vigoroso mecanismo de mobilidade social e de solidariedade, sendo objeto, por isso, de contestações e de apoio nas fileiras liberais e socialdemocratas de então. Nesse diapasão, o tributo adentrou no Século XX sustentando a continuidade do socialismo de cátedra e a sua exequibilidade na República de Weimar e em outros bastiões sociais como o então recém-inaugurado Estado-providência francês. Por recepcionar os valores da solidariedade, o tributo recebeu a adesão dos adeptos do igualitarismo que, de forma apaixonada, afirmavam que finalmente haveria um meio capaz de impor aos ricos um preço a pagar pela paz social. Esse instrumento se materializaria na instituição da progressividade, marco da equidade e da justiça social, discurso esse que ainda se faz presente nesse momento de transição para a pós-modernidade.
Além da construção do tributo como pilar da sociedade solidária, deve ser observado a sua onipresença no rico período que marcou a construção do pensamento econômico moderno, durante os séculos XVII e XVIII. Não apenas os fisiocratas, mas também Graslin, Ricardo e Say consideraram a incidência do tributo nos processos de produção, distribuição e de consumo de.
No entreguerras (1919-1939), firmou-se como o paliativo para debelar a crise dos anos trinta do Século XX e, por isso, se fez objeto de uma releitura que colocaria a função estabilizadora como um dos pilares do keynesianismo. A eliminação dos graves desequilíbrios macroeconômicos que grassavam o cenário sociopolítico passaria pela utilização do tributo como forma de alavancar a retomada do desenvolvimento. Em consequência, a convergência dos problemas econômicos do sistema internacional levaria, já no pós-guerra, a uma expansão significativa da carga tributária com vistas ao saneamento da dívida social. O Estado-providência conheceria o seu apogeu em uma era de desenvolvimento o qual estava estreitamente relacionado à expansão da sociedade industrial.
Mergulhadas em uma crise internacional, iniciada a partir da primeira crise do petróleo (1973), os países desenvolvidos perceberam, finalmente, o fim dos “Trinta Gloriosos”. O desemprego e a inflação exigiam medidas de contenção da carga tributária. Na proa daqueles novos tempos, os Estados Unidos de Reagan e a Inglaterra de Tatcher implementaram medidas, logo no início da década de 1980, com vistas à redução da carga tributária e, com isso, relançar a economia. Essas iniciativas poderiam ser consideradas como uma releitura do keynesianismo uma vez que o Estado abriria mão de receitas tributárias com o intuito de corrigir desequilíbrios macroeconômicos. Entretanto, algumas correntes tidas como “progressistas” enxergaram nessas medidas, um viés neoliberal que seria considerado a marca desses governos e que espalhariam a onda por diversas economias ao redor do mundo. Sob a batuta de Milton Friedman e dos Golden Boys, o Chile se colocaria, a partir de 1973, como o grande laboratório do experimento neoliberal.
Que fatos levaram a essa nova onda liberal? A partir da consolidação dos Estados sociais, registrada na passagem dos séculos, foi instaurado um conflito de proporções políticas o qual confrontou as forças do velho liberalismo e da incipiente socialdemocracia e que perpassou por todos os momentos, da afirmação do intervencionismo, passando pela renovação contratualista do pós-guerra até o ocaso dos Trinta Gloriosos, na primeira metade da década de 1970. Desde a emergência da sociedade solidária até a sua crise em meados da referida década, levou ao recrudescimento dos antigos valores da liberdade traduzidos no vigoroso discurso neoliberal que se delinearia nos horizontes das economias industriais. Embora a crise econômica internacional da década de 1970 tivesse diversas motivações, como por exemplo, o desemprego e a inflação nos países industrializados, a crise da dívida dos países periféricos e os altos preços do petróleo, havia nesse contexto um lugar reservado ao tributo e as suas repercussões macroeconômicas. Os excessos intervencionistas ocorridos após a expansão do modelo universal da seguridade social, consubstanciado principalmente no protótipo do Welfare State concebido por Beveridge no Reino Unido, no pós-guerra, (primeira metade da década de 1940), se tornaria o leitmotif dos discursos dos economistas liberais. As consequências foram percebidas de imediato por terem conduzido à expansão desmedida do Estado. Sem dúvida, a combinação entre o incremento dos gastos públicos e das contribuições sociais desencadearam a reação das forças consideradas como conservadoras. É importante observar que o incremento da carga tributária compunha o arranjo que levaria fatalmente à crise internacional além de ter concorrido para a redução expressiva do poder aquisitivo dos indivíduos, reduzindo os níveis de consumo e gerando efeitos cíclico nefastos e de proporções macroeconômicas.
Afinal, que utopia social poderia se sustentar em um quadro de degradação econômica cujos efeitos atingiriam, de imediato, as políticas fiscais com repercussões sociais extremas? Havia chegado a hora de se repensar o Estado e as suas instituições. De forma vigilante, os organismos de regulação internacional passaram a exigir as condições anteriormente estabelecidas com vistas à inserção internacional das economias em um quadro de interdependência. Logo, um modelo que pudesse confrontar o Estado-providência ganharia destaque. Em voga desde a difusão das ideias da Sociedade do Mont-Pélerin, entidade criada na Suíça em 1947, sob a égide de economistas notáveis como Friedrich von Hayek da escola austríaca ,os laboratórios das escolas do novo pensamento econômico passaram a implementar as suas diretrizes voltadas para o modelo do Estado mínimo e estabeleceram um arsenal de medidas destinadas aos países com desequilíbrios orçamentários.
O tributo, sempre atrelado à noção do intervencionismo estatal, passou então, de forma idêntica, a sofrer modulações com vistas a sua conformação ao pensamento econômico o qual se adequava plenamente aos novos tempos. Assim, além da força inexorável da globalização, acompanhada da conexão dos mercados financeiros, do pungente multilateralismo, da mobilidade da riqueza e da expansão das empresas transnacionais, havia a necessidade de se definir uma nova arquitetura do Estado. Por conseguinte, essas variáveis atuaram sobre os valores ainda não consolidados da equidade e da justiça fiscal no sentido de ditar um novo perfil para os sistemas tributários. Sem dúvidas, estava-se diante de um processo que inverteria a lógica do tributo em decorrência do questionamento, por exemplo, da progressividade, a qual se tornaria o alvo do inconformismo liberal.
O cenário que se delineou, induziu à letargia fiscal e a maioria desorganizada da sociedade não teve como anular a estratégia da elite. Na escala social, a minoria organizada obteve, ao longo de todo o processo que marcou a sociedade pós-Revolução Industrial, posições privilegiadas de poder e de acesso à riqueza social. É importante observar que essa conexão se tornou e se manteve possível, principalmente, por meio do controle do sistema jurídico-tributário dos Estados democráticos. Essa constatação se firma no entendimento do lento e gradual processo de transposição de um modelo de intervencionismo estatal para uma configuração sociopolítica. Esta sempre atuou de modo incessante com vistas a resgatar os valores do Estado mínimo.
Deve ser ressaltado o fato de que esse controle do sistema jurídico-tributário não tem sido percebido pela intelligentsia tributária, a qual se mantém engessada pelos cânones do positivismo e não percebe o engodo das construções jurídicas mais sofisticadas, as quais atentam contra os princípios mínimos da tributação justa. Por esta expressão deve-se entender não a tributação destinada a sustentar plenamente os excessos intervencionistas mas aquela voltada à repartição equânime do ônus fiscal e aos preceitos da justiça fiscal.
A despeito do passado marcado pela riqueza das formulações teóricas sobre as quais se debruçaram ainda inúmeros pensadores que, embora não se referissem à expressão “tributo”, lançaram as bases das suas argumentações calcadas na noção de uma sociedade que teria como norte a igualdade de condições. Esse fundamento marcou o discurso de Tocqueville e justificou a divisão do trabalho social de Durkheim e o funcionalismo de Parsons.2 Essa teorização do tributo enquanto fato social, econômico, jurídico, político e administrativo se confirmaria a partir da inauguração da sociedade moderna, já na fase pós-Revolução Industrial.
Ainda, quanto à crise da década de 1970, os países em desenvolvimento se colocariam nesse cenário de forma inversa. Apesar da onda neoliberal, o que de fato atingiu os Estados endividados, principalmente da América Latina, todavia, foi a política de redução dos gastos públicos e o aumento da carga tributária que contribuiriam para a crise social. É oportuno lembrar que na fase que sucedeu à crise internacional da década de 1970, havia o acompanhamento ostensivo por parte dos organismos internacionais de regulação financeira, da implantação das medidas de austeridade. O incremento vigoroso da carga tributária viria acompanhado da degradação dos serviços públicos devida, em parte, à redução dos gastos públicos e ao processo de urbanização registrado em diversos países, dentre eles o Brasil. De fato, a migração do campo para a cidade, na transição das décadas de 1960 e de 1970, em um momento de retração dos gastos públicos estaria na origem dos problemas sociais que afligem ainda diversos países nesse Século XXI.
O processo de inversão das formas de redistribuição da riqueza social não foi percebido por boa parte da intelligentsia3, talvez preocupada com a interpretação literal dos textos jurídicos e se dobrando sempre à figura sagrado do legislador. Por detrás desse processo, a elite e os grupos de pressão passaram a formular uma estratégia com o intuito de se aproximar melhor do núcleo de decisão estatal. A partir daí, com as facilidades permitidas pelos próprios mecanismos de imposição, tiveram um acesso privilegiado sobre a riqueza social produzida pelo próprio Estado. Sob o manto de regimes fiscais favoráveis à atração de investimento, com exonerações para diferentes categorias de rendas ou, ainda, por meio da utilização da extrafiscalidade, tornaram o Estado refém com base no argumento de que seria necessária uma política voltada à manutenção dos níveis de investimento ou de emprego. A estratégia empregada se constituiu, poderia se dizer, a uma volta ao passado pois estava-se diante dos mesmos argumentos utilizados quando da formação da sociedade de rentistas no Século XIX.
Todavia, a inversão em comento, ocorreu na mudança programada do perfil dos sistemas tributários. Após o relançamento da dinâmica internacional do pós-guerra, a partir da década de 1980, com origens na globalização financeira e na interdependência, impôs-se uma situação desvantajosa para diversos segmentos sociais. O deslocamento do foco da tributação sobre a renda e o patrimônio para o consumo, se constituiria em uma comodidade que se adequava plenamente às diretrizes emanadas pela ordem tributária internacional. A mobilidade dessas bases criou uma situação confortável para esses grupos que se aproximaram dos núcleos de decisão do Estado. Com isso, obtiveram um considerável poder de barganha além de contribuírem para a instauração de uma recrudescente concorrência fiscal desleal. Finalmente, puderam então consolidar a ideia de que o próprio mecanismo do imposto permitiria repercutir o fardo fiscal sobre outros ombros e, de passagem, debelar de vez os delírios intervencionistas do pós-guerra.
Não obstante esse revés, a retomada do discurso sobre os prodígios da progressividade voltaria à cena fiscal. De fato, ao final do século passado e até os dias atuais, o clamor por uma maior progressividade nos sistemas tributários passou a integrar a agenda das reformas fiscais em diversos ordenamentos. Tentativa debalde, poderia se dizer. Entretanto, é importante verificar que uma cortina de fumaça se instalou entre o contribuinte e o Estado. A opacidade das propostas de reforma tributária, sem o exagero que o texto permitiria, beiram às vezes, o burlesco. Por isso, a progressividade tornou-se uma espécie de arlesiana,4 ou seja, um debate sempre adiado em face das dificuldades de se obter o consenso político indispensável ao êxito das negociações. Em outro sentido, os argumentos sólidos daqueles segmentos já nomeados acima – elites e grupos de pressão - se contrapõem de forma absoluta devido à precariedade das propostas elaboradas, até de certa forma eufórica, por determinados segmentos sociais.
Deve ser ressaltado nesse caso que a implementação de uma maior progressividade atingiria, antes de tudo, classes sociais que já sofrem uma tributação excessiva por diversas razões. Por sua vez, aqueles que estão no topo da pirâmide são nômades fiscais, se deslocam facilmente em diversos sistemas tributários, escolhem os mais atraentes do ponto de vista do planejamento tributário e, por isso, estão alheios ao “surrado” discurso da progressividade. Além disso, detém posições privilegiadas próximas do poder e dos legisladores, o que lhes permite ter uma excepcional mobilidade em relação ao contribuinte comum.
Sem abandonarem o falso viés social, propõem políticas públicas ou defendem uma progressividade, sabendo que tais medidas não os alcançarão. Entretanto, obtém o label do politicamente correto, o que os habilita para conduzir o processo político e obterem votos de forma cômoda.
3 O DEBATE PERDIDO DA JUSTIÇA FISCAL
Nunca se falou tanto em justiça fiscal nos dias atuais e, mesmo assim, se está cada vez mais distante desse objetivo. A anestesia fiscal de todos explica o desinteresse de boa parte dos segmentos sociais em acompanhar os desdobramentos da exigência fiscal, não obstante ela estar presente no quotidiano. Nada se faz sem que haja uma incidência do tributo. Entretanto, como explicar o desinteresse da sociedade pelo tributo e os seus efeitos sobre as políticas, o financiamento do Estado, a repartição equânime da carga tributária, dentre outros valores canônicos da justiça fiscal. Nem mesmo o civismo que deve nortear a relação entre o Estado e o cidadão-contribuinte tem entrado na ordem do dia. O próprio Estado se encarregou de cavar um fosso entre ele e o contribuinte. Longe está o tempo onde o cumprimento do dever fiscal se constituía em orgulho pessoal e o sentimento do dever cumprido.
Esse quadro permite que outros segmentos sociais tirem proveito da riqueza social produzida pela coletividade e pelo Estado. O desconhecimento dos princípios basilares da tributação permite a instauração de regimes fiscais favoráveis para determinados grupos em detrimento de outros. Não há nem como se falar em justiça fiscal em uma situação caracterizada pela penúria
Contudo, o perfil dos sistemas tributários foi direcionado de forma a obedecer a uma lógica estabelecida ainda nos albores da década de 1970. A inexorável marcha da globalização financeira, acompanhada da mobilidade das bases tributáveis como assinalou Faria (1999, p. 23) inverteu o que poderia ser considerado como o desdobramento natural do perfil dos sistemas tributários. O quadro predominante na década de 1960, onde o desenvolvimento levaria a uma primazia da tributação direta mesmos nos países « subdesenvolvidos », de tecido fiscal precário, em razão direta do desenvolvimento que estes experimentariam, criaria nichos de riquezas suscetíveis de serem submetidos à tributação. Seria esta a modernização dos sistemas tributários e que permitiriam alcançar uma maior justiça fiscal marcada pelo abandono natural da tributação regressiva e injusta, em favor de uma tributação voltada para a justiça fiscal, incidente sobre a renda e o patrimônio, expressões do desenvolvimento.
Sem embargos, é possível afirmar que a inversão desse processo lógico, onde os países desenvolvidos tinham na tributação direta a sua principal fonte de receitas e os demais, os países « subdesenvolvidos » dependiam mais da tributação indireta, notadamente daquelas receitas provenientes das importações, já que não detinham qualquer parque industrial importante. Esse sistema de « tributação de portas » se revelava insustentável em razão das necessidades orçamentárias. Assim é que na atualidade, com o incremento da globalização financeira, até mesmo os países desenvolvidos a dependerem da tributação indireta devido à tendência de redução dos tributos incidentes sobre a renda e o patrimônio em razão da concorrência fiscal internacional. A exposição de diversas economias às agruras da concorrência fiscal desleal e à mobilidade das bases tributáveis impuseram uma redução das alíquotas incidentes sobre os tributos diretos, quando não, a concessão de regimes favoráveis de investimentos, caracterizados, em boa parte, pela exoneração de investimentos estrangeiros. Com isso, os países perderam a margem de manobra necessária com vistas à disponibilização de sistemas tributários mais progressivos e tiveram que buscar junto à renda assalariada e o consumo, as receitas tributárias perdidas. Não haveria meios de se discutir a progressividade nessa perspectiva
Não há que se discutir a boa-fé daqueles que se lançam na proposição de modelos que vão desde a simplicidade do sistema tributário até a implementação dos mecanismos da progressividade em escala superior àquelas praticadas no quotidiano. Além do que, o leitmotif desses acadêmicos não raras vezes se dirige às vertentes da justiça fiscal. Para isso, trazem listas exaustivas dos grandes teóricos da justiça que permeiam o universo literário atual o que lhes permite discorrer, por horas a fio, sobre as virtudes da tributação justa, equânime e de outros adjetivos próprios do jargão fiscal. Essa utopia vem sendo perseguida por anos a fio por meio de um rosário de proposições e não se esgotam jamais. Apesar da sinceridade dessas propostas de reforma, elas ignoram a lógica dos sistemas tributários enquanto arena de disputa política.
Sem dúvida, os custos decorrentes do financiamento do Estado, dentro da própria lógica do mecanismo tributário, são sempre repassados para quem não tem como evitar o ônus da vida em sociedade. É inquestionável que as formas de repercussão da carga tributária sobre outros foram positivadas e fazendo com isso, que tais comportamentos ocorram à luz da legalidade. A junção desse mecanismo à sociedade de consumo resulta no fato de que a grande massa, aqui em oposição à noção de elite, suportaria todo o custo, desde a produção até o consumo final. Tal expectativa se confirma quando se depara com a agressividade dos sistemas regressivos de tributação, em voga nas diversas economias. Essa perspectiva pode ser facilmente comprovada ao se analisar as planilhas da cadeia produtiva, onde o tributo é tido como um custo e repassado, assim, ao preço final dos produtos.
É importante observar ainda que o outro lado da moeda está relacionado à acumulação de riqueza social pelo Estado. Não é por demais observar que a concessão de regimes tributários favoráveis aos mais diversos segmentos do mercado geram distorções consideráveis e contribui para a acumulação perversa de riquezas. Apesar dos objetivos iniciais dessas concessões do poder público serem voltados para a geração de empregos e promoção do desenvolvimento, o fato é que diversos apontamentos demonstram que os resultados finais nem sempre são alçados. Em diversas situações a redução de carga tributária para um determinado segmento econômico não tem refletido no preço final dos produtos. Ora, tal perspectiva conduz de imediato à constatação de que essas medidas favoreceriam a acumulação de riquezas nos limites desses segmentos.
Entretanto, o decorrer do tempo e as modalidades de tributação que logo se impuseram, demonstrariam o início de um processo de redistribuição inversa da riqueza social. Nesse caso, a predominância de impostos indiretos aliada a um sistema de exoneração fiscal no campo dos impostos diretos, segundo a categoria da renda. A diversidade de impostos que emergiram em diferentes momentos não esconderia a lógica inexorável da repercussão do seu ônus. Afinal, o surgimento de um mecanismo destinado a retirar parte da riqueza dos indivíduos não deixaria de integrar a estratégia daqueles que, em posições privilegiadas no cenário sociopolítico, buscariam os meios de se furtar ao resgate da dívida social por meio do tributo.
Retomando a questão que se encontra no ápice dos discursos por mais progressividade e justiça fiscal, a crítica volta-se para o que é considerado como a inovação fiscal do Século XX. A tributação indireta integra, de forma constante, a agenda daqueles que contestam o seu efeito regressivo e a sua proporcionalidade. Quando se mede a carga tributária, percebe-se logo os números significativos da arrecadação dos tributos indiretos. Sem dúvida, essas características estão presentes no próprio mecanismo do tributo. Quais seriam, pois, as razões que levariam a sua persistência no cenário fiscal contemporâneo, não obstante a unanimidade em torno do seu caráter supostamente nocivo em face dos cânones da justiça fiscal? A lógica que conduz à estruturação dos sistemas tributários e as mais variadas modalidades impositivas que compõem o seu perfil deixou há muito tempo de dar uma resposta satisfatória sobre esse tema. Como ignorar, portanto, a modulação do sistema legal e do próprio sistema tributário diante de quadro tão adverso como o atual? A implementação de alíquotas progressivas mais altas daria uma maior efetividade à justiça fiscal?
Em realidade, o pragmatismo tem ditado a condução da política fiscal no Brasil. Quando se verifica a inexistência de margem de manobra para se atuar em aspectos pontuais que levariam a uma maior justiça fiscal, como por exemplo a correção da tabela do Imposto de Renda ou a redução de tratamentos privilegiados a determinadas categorias de renda, vê-se que a justiça fiscal cada vez mais se torna uma utopia. A necessidade de inserção dos sistemas tributários na ordem internacional é outro viés que impõe o tratamento desigual de contribuintes. Nesse caso, o pragmatismo prevalece devido à necessidade que o país tem de atrair investimentos estrangeiros necessários ao seu desenvolvimento.
4 UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE O PERFIL DOS ATUAIS SISTEMAS TRIBUTÁRIOS
Preliminarmente, se faz importante descrever o que seria a definição de riqueza social. O conceito elaborado por Walras (1952, p. 21), segundo o qual a riqueza social seria o conjunto das coisas materiais ou imateriais que são raras, ou seja, elas nos são úteis mas que existem em quantidade limitada. Por isso, Walras (1952, p. 34) acrescenta que “Il faut ensuite qu’au sein de la division du travail, comme en dehors, la répartition de la richesse sociale entre les hommes en société soit équitable ». Deve ser notado que esta repartição equânime da riqueza social se constitui no nó górdio na atual sociedade. Apesar de integrarem as cartas constitucionais em diversos sistemas de direito, os princípios basilares da justiça fiscal têm sido ignorados de forma sistemática em proveito de um pragmatismo irresponsável.
Por conseguinte, no transcorrer do tempo pode se perceber que as modalidades de tributação que logo se impuseram, demonstrariam o início de um processo de redistribuição inversa da riqueza social, pelas razões exposta acima. A diversidade de impostos que emergiram nos diferentes momentos sociopolíticos não esconderia a lógica inexorável da repercussão do seu ônus sobre o patrimônio e o bem-estar dos indivíduos. Afinal, o surgimento de um mecanismo destinado a retirar parte da riqueza dos indivíduos não deixaria de integrar a estratégia daqueles que, em posições privilegiadas no cenário sociopolítico se se furtariam ao resgate da dívida social.
Outra questão que se encontra no ápice dos discursos por mais progressividade e justiça fiscal, é aquela voltada para o que se considera como sendo a inovação fiscal do Século XX. A tributação indireta integra, de forma constante, a agenda daqueles que contestam o seu efeito regressivo, a sua proporcionalidade e a sua presença ostensiva nos números que medem a carga tributária. Sem dúvida, essas características fazem parte da natureza específica do tributo. Quais seriam, pois, as razões que levariam a sua persistência no cenário fiscal contemporâneo, não obstante a unanimidade em torno do seu caráter supostamente nocivo em face dos cânones da justiça fiscal? A lógica que conduz à estruturação dos sistemas tributários e as mais variadas modalidades impositivas em perspectiva que compõem o seu perfil, deixou há muito tempo de prevalecer de forma racional.
O que se pode constar em todo esse cenário sociopolítico é que a configuração dos sistemas tributários expõe em seu interior, conflitos e disputas políticas pela obtenção de posições privilegiadas em torno dos núcleos de poder. O que estaria em disputa nesse caso, seria a riqueza social, traduzindo de outra forma, as exonerações e regimes fiscais favoráveis a determinados segmentos do universo de contribuintes. Com isso, promove-se um reajuste de poder na escala social que culmina no agravamento do fardo tributário sobre a maioria desorganizada. Esses fundamentos decorrem da teoria das elites a qual poderia estar ao mesmo tempo, no que se refere à relação conflituosa entre o Estado e o contribuinte, tanto no espectro da sociologia política quanto da sociologia fiscal. Não seria por demais lembrar que o tributo é um fato social e, por isso, é passível de tantas influências ou manipulações as quais refletem uma disputa pela riqueza social, o que a teoria do Public Choice5 denominou de rent-seeking6. Afinal, pode-se assegurar que o sistema tributário é uma arena política na qual se digladiam as forças mais expressivas e com influência sobre a produção da norma jurídico-tributário. Assim, é que diversas categorias têm obtidos regimes favoráveis os quais passam a integrar o ordenamento jurídico e nesse caso, pode-se apontar os segmentos econômicos, investidores nacionais e estrangeiros, sindicatos e, em tempos mais recentes, as entidades do Terceiro Setor.
O conjunto de forças que se aglutinam em torno do Estado, com o objetivo precípuo de obter favores fiscais, como é o caso dos grupos apontados acima, deslocam o ônus fiscal para outros segmentos sociais, os quais passam a suportar o fardo fiscal. É importante observar que essa dinâmica sempre fez parte da natureza do tributo, desde os primórdios quando era visto como uma forma de dominação ou de submissão. Na atualidade, ao ser atrelado a noção de justiça ou de democracia e até mesmo de solidariedade, tal suposição não lhe suprime a noção de castigo àqueles ao qual é submetido. É nessa perspectiva, talvez, e não percebida por muitos em razão da anestesia fiscal que parece prevalecer, que muitos se deixam conduzir pelas promessas da grande sociedade solidária. Em realidade, apesar de muito bem elaborada no curso das últimas décadas, as teorias da justiça fiscal jamais contemplaram o aspecto das incidências sociopolíticas sobre a tributação e tratam, apenas na superfície, a realidade inexorável decorrente do pesado fardo da vida em sociedade.
Busino (1992, p. 31) reiterou que “La direction de la société appartient aux élites qui sont variées et disparates”. Nesse caso, o autor se refere nesse exemplo, à minoria organizada, em contraposição à massa desorganizada. Sem dúvida, em torno do processo de produção, circulação e consumo da riqueza social, inúmeros segmentos da sociedade se organizam com vistas a não apenas se apropriar da mesma mas também repercutir sobre outras classes, os custos relativos ao financiamento do Estado. Trata-se, em realidade, de uma ruptura do laço social estabelecido na qual o Estado privilegia determinadas relações em detrimento de outras. A repercussão dessa postura leva ao desequilíbrio daqueles que cumprem como seu dever cívico de pagar tributos. A erosão das receitas públicas, seja em razão dos regimes fiscais favoráveis, da sonegação fiscal, das possibilidades oferecidas pelo planejamento tributário e de outros meios que distinguem os contribuintes com mobilidade (os nômades fiscais) e os contribuintes sem mobilidades, ou melhor, não globalizados. Faria (1999, p. 23), apontou esta limitação à autonomia dos Estados em tributar suas bases econômicas em razão da mobilidades das bases tributáveis em quadro globalizante ao notar que “Numa situação extrema, os Estados chegam ao ponto de não mais conseguirem estabelecer os tributos a serem aplicados sobre a riqueza – este é que, transnacionalizando-se, passa a escolher onde pagá-los”.
Sem equívocos, é possível assinalar que não haveria como consolidar os cânones da justiça fiscal em um ambiente jurídico marcado pelo desequilíbrio de uma das partes. A arena política na qual se transformou o sistema tributário e o núcleo de redistribuição da riqueza, demonstra a preponderância de grupos de pressão, os quais obtém posições privilegiadas para negociar todo o mosaico de possibilidades de redução de suas cargas tributárias. Trata-se de um jogo onde determinadas classes promover um reajuste de poder a partir de suas estratégias em detrimento, portanto, de outras. Ao se referir a James Carter, Eisenstein (2010, p. 17) afirma que este sempre foi um defensor do tributo e sempre manteve a acusação à classe política e as suas distinções entre ricos e pobres ao proclamar que “There was “clamor”, he stated, that the tax was “class legislation” because it made “distinction between the rich and the poor”. Essa opção da classe política não é uma surpresa quando se verifica a outra face da moeda do Estado fiscal, a dos gastos públicos, a qual se encontra estreitamente vinculada às formas de obtenção de receitas para tanto. Nesse domínio, há do mesmo modo um interesse latente dos grupos de interesse que alcança de forma direta o processo eleitoral. Falcão e Neiva (2016, p. 240), ao discorrerem sobre o rent-seeking destacaram que “Em realidade, o que lhes move é a busca constante pelos interesses privados, ou seja, a busca por vantagens legais que favoreçam uma maior transferência de renda em benefício próprio”. Da apropriação do sistema tributário por segmentos com interesses privados pode-se inferir que Proudhon (1861, p. 186) tinha uma certa razão quando questionou a progressividade, um dos cânones da justiça fiscal, como forma de entreter o público por meio do verniz da filantropia: “Quand cessera-t-on d’entretenir le public de ce bilboquet de la progression, qui n’a été imaginé que pour donner un vernis de philanthropie à l’impôt et ménager la pudeur des riches”.
Deve ser observado que esta argumentação de Proudhon permite que se possa questionar os princípios que foram incorporados à relação jurídico-tributária ao longo de mais de dois séculos. Nessa perspectiva, os princípios da capacidade contributiva e do consentimento seriam uma espécie de verniz de democracia que levaria todos a acreditar na boa-fé do sistema político. Assim, o manto da legalidade não deixaria dúvidas quanto ao aspecto legal da exigência fiscal. Entretanto, a espada que se coloca acima da cabeça de todos é a da manipulação do sistema legal por determinadas classes, como ressaltou Busino mais acima. Para reforçar esse entendimento, faz-se importante trazer a esse trabalho, a manifestação de Meynaud (1960: 05), sobre a ação de determinados grupos sociais (grupos de pressão). Esses, ressalta o autor, “lutam de forma engajada com vistas a tornar as decisões dos poderes públicos de acordo com os interesses ou ideias de uma determinada categoria social e, por isso, são considerados como um instrumento poderoso de anulação da democracia”. Deste modo, vê-se que o cidadão-contribuinte teria com o que se preocupar em face da apropriação do sistema legal por esses grupos. A primazia de determinadas classes sociais sobre outras decorre, em parte, do reajuste de poder proporcionado pelo tributo. Essa constatação se constitui em um paradoxo. Visto como forma de coesão social e de redistribuição, o tributo atuaria no sentido inverso ao promover a redistribuição das classes menos favorecidas àquelas mais aquinhoadas pelas razões expostas acima. Falcão (2016, p. 1.856) explicou essa distorção ao afiançar que “O reajuste do poder entre as classes ocorreu, justamente, no acesso privilegiado que parte dessas teriam ao aparato estatal ou, de outra forma, ao sistema legal como resultado da vontade de uma minoria”.
Breve, pode-se asseverar que esta perspectiva sociopolítica do tributo expõe uma grave ruptura do laço social que une todos em torno da solidariedade e de outros pressupostos que implica a relação entre o Estado e o contribuinte, a qual foi consentida livremente e de forma racional nos termos da lição de Nemo (2017, p. 167):
Il importe de comprendre qu’en créant de plus en plus d’impôts sans contrepartie, les Étas-providence modernes, et spécialement la France, ont rompu avec le pacte qui avait été formulé lors des grandes révolutions démocratiques selon lequel l’impôt devait résulter d’un contrat librement consenti sur des bases rationnelles entre l’État et les citoyens. En rompant ce pacte, les Étas-providence ont posé les germes d’une grave division sociale.
No entanto, talvez em razão do estado de anestesia fiscal na qual se encontra quase todo o corpo social, a divisão social citada por Nemo tem passado desapercebida por todos. De fato, poucos atentam para a presença quotidiana do ônus tributário no seu bem-estar e, por isso, não se interessam pelas discussões sobre reforma tributária ou qualquer movimento no sentido de se reverter a situação desvantajosa para a maior parte dos segmentos sociais. Se por um lado, os inúmeros princípios constitucionais que protegem o cidadão-contribuinte instituem limites ao poder tributante do Estado, por outro, não fixa um limite racional entre capacidade contributiva e o confisco. Essa distorção, dentre outras que fazem parte dos direitos fundamentais, em relação ao tributo, não são observadas. Nesse caso, pode ser apontada, por exemplo, a redistribuição justa e equânime da carga tributária. As possibilidades de se subtrair ao ônus fiscal colocadas à disposição de determinadas categorias de contribuintes reduzem de forma substancial as receitas do Estado. Nesse caso, o velho brocardo das finanças pública, onde se o Estado perde um centavo terá que procurar outra maneira mais cômoda de substituí-lo para evitar os desequilíbrios das contas públicas.
4.1 O tributo na pós-modernidade
O conceito de pós-modernidade, que para alguns cientistas sociais não teria ainda qualquer evidência empírica, teria surgido em meados da década de 1970. Por ser um conceito ainda em construção tem colocados dificuldades para uma melhor compreensão do seu alcance. Giddens e Sutton (2016, p. 26) definiram a pós-modernidade como o “Período histórico, seguinte à modernidade, que é definido como menos clareza, é menos pluralístico e menos socialmente diversificado do que a modernidade que o precedeu.” Depreende-se dessa lição que a inestimável contribuição da modernidade aos valores que hoje são comuns vai sendo aos poucos deixada de lado, criando uma nova identidade cultural a qual é marcada por um nítido desapego ao passado. Seria uma espécie de flexibilização das relações socioeconômicas e uma desorientação dos atores individuais nas sociedades avançadas (BOUDON et al., 2012, p. 182).
Conforme estabelecido acima, o estado de anestesia fiscal predominantes nas sociedades atuais não deixam qualquer dúvida sobre a não implicação de todos no debate sobre o papel do tributo. Em parte, o dogmatismo excessivo por parte daqueles que operam na seara tributária tem descartado uma parte substantiva da sociedade na discussão sobre a matéria. Graças aos estudos sobre a filosofia ou a sociologia do tributo é que se tem avançado de forma gradual sobre matéria tão importante.
Ora, o tributo não poderia ser estudado apenas pela sua ótica jurídica, essa perspectiva elimina boa parte da sociedade do debate sobre reforma tributária, por exemplo. O jargão jurídico próprio do Direito Tributário tem se mostrado inacessível, o que implica em um distanciamento da realidade social. Se o tributo tem uma relação estreita com os níveis de bem-estar individual e também com a noção de propriedade, por que há um desinteresse da sociedade em diante de temas tão sensíveis.
Essas questões permeiam a passagem da modernidade à pós-modernidade, demonstrando que a questão ainda não foi resolvida. Ao contrário, no momento da emergência do Estado providência, em meados do Século XIX, o quadro prevalecente de precariedade social, de desequilíbrio entre o capital e o trabalho pareciam demonstrar que, finalmente, o corpo social teria encontrado os meios para pôr um fim aquele estado de penúria. A transformação social, ou melhor, a mudança social ocorrida no transcurso do referido século, lançaria as bases da modernidade, inaugurando uma nova era de coesão social, de progresso e afirmação da democracia.
Contudo, nesse momento, onde a pós-modernidade pontua na agenda, em todas as direções, o que deixa todos receosos é a opacidade dos fatos sociais e o laissez-faire que parece estar presente na relação entre o Estado e o cidadão-contribuinte. O Estado pode ser responsabilizado por este distanciamento pois de muito, tem estabelecido barreiras que inibem a noção cívica no cumprimento da obrigação tributária. O comportamento social nesse início da pós-modernidade transcende aos velhos embates sobre os valores do passado e ignora certas questões que hoje não teria, que sabe, a primazia de outros tempos. Esses valores do passado contém um estofo teórico que hoje não é percebido. Mesmo que prevaleça a pós-modernidade, a etapa que a antecede, a modernidade, possui, segundo Giddens e Sutton (2016, p. 30), benefícios claros “como a valorização da igualdade, da liberdade individual e das abordagens racionais aos problemas sociais”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente trabalho buscou-se contextualizar o tributo como fato sociopolítico, da modernidade à pós-modernidade. Sem a pretensão de esgotar o tema, a argumentação conduzida ao longo do trabalho procurou expor as questões principais que têm levado às distorções dos atuais sistemas tributários. O dilema da justiça fiscal e da progressividade, temas conflitantes a tal ponto que mesmo nessa perspectiva de passagem da sociedade moderna à pós-moderna ainda não foi devidamente ajustado. Colocou-se ainda em evidência o papel da elite e dos grupos de pressão na modulação da carga tributária e do sistema legal, demonstrando as estratégias de apropriação da escassa riqueza social.
O rompimento do contrato social, conduzido pelo Estado, decorreu da inobservância dos princípios basilares que caracterizam o tributo como produto da vida em sociedade. O deslocamento do ônus tributário para as parcelas menos favorecidas da população resulta de uma estratégia dos grupos sociais identificados acima, da necessidade de inserção internacional e do jogo político. A implementação de regimes fiscais favoráveis seria, portanto, uma negação de todo o percurso democrático que marcou a evolução do tributo, fazendo com que ocorre uma inversão na lógica do sistema tributário, ao redistribuir do pobre para o rico por meio de um mosaico de possibilidades.
Mesmo diante desse quadro adverso, a sociedade não tem respondido de forma a mudar essa realidade. Com isso, fica demonstrado que estariam todos sob uma forma de anestesia fiscal. Esse contexto se agrava ainda mais quando se verifica o total desconhecimento sobre a realidade da política e da cidadania fiscal, quadro esse que interessa de perto àqueles que obtém as maiores parcelas da riqueza social. A desorientação do contribuinte seria um traço específico da cidadania fiscal e demonstraria que já teríamos adentrado na pós-modernidade social?
REFERÊNCIAS
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BUSINO, Giovanni. Élites et élitisme. Paris : Presses Universitaires de France, 1992.
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FALCÃO, Maurin A. O tributo e o controle social na argumentação funcionalista de Fritz Karl Mann. Quaestio Iuris, 09, 04, Rio de Janeiro, p. 1841-1864, 2016.
______. NEIVA, Leonardo José F. A economia política do tributo segundo a Teoria do Public Choice: análise do caso brasileiro para uma melhor compreensão do desenvolvimento político. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 13, João Pessoa, p. 237-258, 2016.
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PARSONS, Talcott. Les systèmes des sociétés modernes. Traduit de l’anglais par Guy Melleray. Paris: Dunod, 1973.
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SALANIÉ, Bernard. Théorie économie de la fiscalité. Paris : Economica, 2002.
WALRAS, Léon. Éléments d’économie politique. Paris : Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 1952.
1Doutor em Direito Público pela Universidade de Paris 11-Sud (2000). Leciona no Mestrado em Direito e nos cursos de Direito e de Relações Internacionais (Cátedra Jean Monnet) da Universidade Católica de Brasília. E-mail: mfalcao@pos.ucb.br
2 Alexis de Tocqueville (1805-1859), pensador político francês e precursor da sociologia. Os seus trabalhos influenciariam toda uma geração de sociólogos e ao pregar a igualdade condições, estendeu-a também à igualdade em face do tributo para se evitar a consequência de se poupar o rico e sobrecarregar o pobre. Émile Durkheim (1858-1917), sociólogo francês considerado um dos fundadores da sociologia ao consagrar o método científico e a observação empírica dos fatos sociais. Talcott Parsons (192-1979), sociólogo americano considerado o pai do estruturalismo, onde o indivíduo seria apenas uma peça da estrutura do funcionamento social.
3 Intelligentsia: termo empregado para definir o conjunto um grupo de intelectuais com influência na política, na cultura em outros segmentos do conhecimento, em uma determinada sociedade. Pode ser utilizado também para definir o conjunto de intelectuais de um país.
4 Arlesiana, do francês arlésienne, termo que designa algo que foi anunciados por diversas vezes e jamais concluído ou quando se espera por alguma coisa e esta não chega nunca. Em sua origem, refere-se às mulheres nascidas na cidade de Arles (França) e ao conto de Alphonse Daudet (1840-1897), L’Arlésienne.
5 Public choice: teoria desenvolvida em 1962, nos Estados Unidos, para explicar a atuação dos fenômenos políticos a partir de métodos econômicos criados para explicar a forma como são tomadas as decisões políticas, as falhas do Estados. A teoria estuda ainda a questão do voto, da burocracia e dos grupos de pressão. A obra de James Buchanan e Gordon Tullock - The calculs of consent - publicada no mesmo ano, se constitui na pedra fundamental da teoria.
6 Da tradução literal: captura de renda. Todavia, refere-se à busca de privilégios a partir da atuação política e não do mercado.