SITUAÇÃO JURÍDICA: A SUPRESSÃO DA AUTORIDADE PARENTAL POR ORDEM JUDICIAL E O POSTERIOR EXERCÍCIO (I)LEGAL DE DIREITOS E DEVERES PERANTE OS FILHOS

LEGAL SITUTATION: THE PARENTAL AUTHORITY SUPRESSION BY COURT ORDER AND THE SUBSEQUENT I(LEGAL) EXERCISE OF RIGHTS AND DUTIES TOWARDS CHILDREN

Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral1

Paulo Roberto Ciola de Castro 2

Nayara Rangel Vasconcellos3

Recebido: 13/06/2018

Aprovado: 22/10/2019

RESUMO:

Explicita-se a evolução da noção clássica de relação jurídica, associada aos sujeitos de direito, à situação jurídica, referente aos centros ou núcleos de direitos e interesses. Empreende-se um exame casuístico, no qual o restabelecimento do poder parental é pleiteado pela genitora, mesmo não havendo amparo no direito objetivo nesse sentido. Referida apuração causal ocorre sob a perspectiva de disposições normativas afetas ao direito das famílias, expondo-se pessoas como núcleos de interesses, em face de decisões judiciais. A partir do método científico dedutivo, reunindo-se conceitos doutrinários, demonstra-se que o reconhecimento da existência do núcleo de interesses permite o restabelecimento da autoridade parental, materializando-se a situação fática existente, mesmo em detrimento de ordem judicial anterior que extinguiu o poder parental.

Palavras-chave: Relação Jurídica. Direito Subjetivo. Situação Jurídica. Núcleo de Interesses. Autoridade Parental.

ABSTRACT:

Explicit the evolution of classic juridical relation, associated to subjects of law, to juridical situation, related to center or nucleus of rights and interests. Analysis a practice case in which the reinstatement of parental power is sought by the mother, even though there is no support in the objective right in that sense. The study of the practical case is carried out under the perspective of normative dispositions affected to the right of the families, being exposed people like nuclei of interests, in face of judicial decisions. From the deductive scientific method, bringing together doctrinal concepts, it is demonstrated that the recognition of the existence of the core of interests allows the reestablishment of parental authority, materializing the existing factual situation, even to the detriment of a previous judicial order that extinguished the parental power.

Keywords: Juridical Relation. Subjective Right. Juridical Situation. Nucleus of Interests. Parental Authority.

1. INTRODUÇÃO

No âmbito das relações jurídicas, busca-se hodiernamente desvelar a coexistência de duas possíveis interpretações: de um lado, observa-se a clássica noção de relação jurídica, segundo a qual as partes situam-se em polos obrigacionais antagônicos e exercem direitos previstos em lei entre si; noutro prisma, podem os agentes que se relacionam negocialmente ser compreendidos como representantes, cada qual, de um núcleo de interesses, em torno do qual, além de normas do direito posto, gravitam disposições normativas e princípios jurídicos entendidos de maneira sistemática, ou mesmo holística.

Sob este viés, analisa-se o seguinte caso concreto, em síntese: uma mãe que é destituída do poder familiar, por permitir a prática de ato libidinoso contra sua prole, sendo condenada à prisão como consequência final. Ao sair da prisão, quatro anos mais tarde, buscou seus filhos que estavam em poder da avó materna, retomando a convivência com esses, e, no plano fático, passou novamente a exercer o poder familiar. Ato contínuo, a genitora ajuizou demanda perante o Poder Judiciário, buscando o restabelecimento do poder parental.

Analisando-se as disposições normativas vigentes, verifica-se a ausência de supedâneo legal que possibilite o restabelecimento do poder familiar. Ou seja, não há amparo objetivo à genitora que veiculou tal pretensão. Assim, desse ponto exsurge a controvertida questão: seria possível, superando-se o paradigma clássico da relação jurídica, utilizar-se o jurista de noções concernentes à situação jurídica, de modo a se concluir pelo restabelecimento do poder familiar, ainda que não haja possibilidade objetiva prevista nesse sentido?

Almeja-se explicitar o significado das situações jurídicas, seus impactos e efeitos, em face de normas de direito subjetivo clássico, apresentando-se princípios jurídicos e uma visão sistêmica. Trata-se da evolução do paradigma hermenêutico, possibilitando-se o reconhecimento de situações cuja previsão normativa clássica é lacunosa ou mesmo inexistente. Consequentemente, direitos fundamentais, explicitados mediante redações porosas e abertas a interpretações, seriam naturalmente concretizados.

Inicialmente, esmiúçam-se conceitos relacionados à relação jurídica e à situação jurídica, permitindo-se a compreensão da evolução paradigmática que possibilitou ao intérprete inserir os interesses no contexto dos sujeitos de direito, que eram outrora vistos como partícipes de uma relação inflexível. Por conseguinte, realiza-se a análise do caso concreto, com o objetivo de situar no plano fático os núcleos de interesse, de modo a se perceber a possibilidade de reconhecimento de efeitos atribuídos pelo ordenamento jurídico aos centros de interesses. Da reunião conceitual, retira-se a conclusão acerca de qual será o cunho decisório adequado à resolução do conflito – restabelecimento ou não do poder parental, mesmo sem norma objetiva nesse sentido.

 

2. OS PRIMEIROS CONTATOS COM O TEMA: DA RELAÇÃO JURÍDICA À SITUAÇÃO JURÍDICA

Pode-se afirmar que pessoas envolvidas em relações negociais têm poderes para elaborar regras entre si, com o intuito de produzirem os efeitos jurídicos pretendidos. Noutras palavras, podem as partes realizar acordos de vontade, dos quais resultarão a criação, a modificação ou a extinção de direitos e deveres. Nessa perspectiva, percebe-se o polo ativo e o polo passivo de uma relação obrigacional: o adquirente e o alienante, o locatário e o locador, o mutuário e o mutuante, e ainda diversas outras posições pontualmente previstas.

Sob essa perspectiva, os agentes que pactuam negócios jurídicos, autorizados pelo princípio da autonomia privada4, dispõem da limitada liberdade que possuem na estipulação dos acordos de vontade. Ressalte-se que essa limitação à liberdade diz respeito, justamente, às estipulações prévias colocadas pelo legislador aos agentes que figuram nos polos das relações obrigacionais. Note-se, ilustrativamente, que não cabe ao locador deixar de observar disposições da Lei nº 8.245/1991 (Lei do Inquilinato), sendo sua autonomia naturalmente tolhida pelo dirigismo contratual5 sobre essa espécie contratual.

O direito, como hoje ensinado e aprendido, estruturado cientificamente, não descura da clássica separação direito objetivo (norma agendi – para indicar as previsões abstratas do ordenamento) vs. direito subjetivo (para caracterizar a concretude normativa na esfera de atuação do indivíduo, a quem a facultas agendi permite atuar segundo a vontade na realização de um interesse) (AMARAL; PONA, 2016, p. 22).

Trilhando-se o caminho pela premissa clássica, infere-se que as condutas humanas se amparam, primordialmente, na norma jurídica. As partes buscam o lastro previsto em lei para o negócio que pretendem praticar (direito objetivo – previsões abstratas), assim como se pautam na parcela de liberdade que lhes é conferida pelo ordenamento jurídico (direito subjetivo – autonomia privada). Buscam as partes alocar-se numa ou noutra posição jurídica, sendo agentes ativos ou passivos, credoras ou devedoras, de tal modo que o vislumbre de seus deveres e obrigações se apresenta claro em toda e qualquer relação obrigacional.

Nesse ambiente, Pietro Perlingieri (2007, p. 675) aponta o direito subjetivo como “um poder reconhecido pelo ordenamento a um sujeito para a realização de um interesse próprio do sujeito”. Com base neste conceito, e conforme anteriormente abordado, pode-se entender que a atuação do indivíduo é limitada ao que o ordenamento prevê, ou seja, a verdadeira liberdade contratual, ou a manifestação da vontade e o exercício da liberdade, só ocorrem até o limite legal – prostrando-se perante o dirigismo contratual.

Direito subjetivo, no sentido específico e próprio deste termo, só existe quando a situação subjetiva implica a possibilidade de uma pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação ou de um ato de outrem. O núcleo do conceito de direito subjetivo é a pretensão (Anspruch), a qual pressupõe que sejam correspectivos aquilo que é pretendido por um sujeito e aquilo que é devido pelo outro (tal como se dá nos contratos) ou que pelo menos entre a pretensão do titular do direito subjetivo e o comportamento exigido de outrem haja certa proporcionalidade compatível com a regra de direito aplicável à espécie (REALE, 2002, p. 259).

Uma questão problemática afeta a este modelo clássico é a seguinte: ao conceber o individualismo e a autonomia privada na busca de interesses pessoais e exclusivos do sujeito, ficam enrijecidos os efeitos da relação jurídica, haja vista estarem previamente definidos nas disposições normativas de direito objetivo correspondentes à espécie negocial escolhida pelas partes.

Ressalte-se que os efeitos acima apontados não dizem respeito às consequências negociais (efeitos mediatos) pretendidas pelas partes6, que assim dispuseram de acordo com sua autonomia. Referidos efeitos estão relacionados às possibilidades que teriam as partes de exigir posturas da outra, reciprocamente, ainda que inexistentes comandos objetivos nas normas da espécie negocial correspondente.

Ocorre que esses limites normativos – impostos tanto pelos contornos da norma objetiva abstrata específica, quanto pelas fronteiras da autonomia privada – podem significar obstáculos a situações fáticas que reclamam soluções diversas daquelas rigidamente preconizadas pelo legislador. Como efeito último, este paradigma clássico impõe bloqueios ao hermeneuta, que ao buscar realizar a simples subsunção do fato à norma, simplesmente não encontrará nesta última qualquer possibilidade de enquadramento: não existirá, em muitas situações, disposição normativa alguma que se relacione à pretensão de alguma das partes envolvida na relação jurídica.

Afigura-se salutar conceituar, destarte, as situações jurídicas, evoluindo-se a noção outrora predominante da relação jurídica clássica. Marcos Bernardes de Mello (2004, p. 78-79) aponta que “situação jurídica” é uma expressão que pode ser utilizada em duas acepções: i) em sentido amplo, para designar toda e qualquer consequência que surge no mundo jurídico em decorrência do surgimento de um fato jurídico; ii) em sentido mais restrito, para designar os casos de eficácia jurídica em que não se concretiza uma relação jurídica.

Tem-se que as situações jurídicas lato sensu abarcam todo o tipo de eficácia jurídica, inclusive a relação jurídica, esta significando uma espécie de situação jurídica. Já as situações jurídicas stricto sensu designam os demais tipos de eficácia jurídica, menos a relação jurídica (MELLO, 2004, p. 79).

[...] haverá situação jurídica subjetiva toda vez que o modo de ser, de pretender ou de agir de uma pessoa corresponder ao tipo de atividade ou pretensão abstratamente configurado numa ou mais regras de direito. Daí dizermos, numa síntese, que engloba os dois momentos acima distintos, que situação subjetiva é a possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito (REALE, 2002, p. 259).

Justamente por se compreender a estrutura das relações jurídicas, possibilitou-se analisar as situações subjetivas sob uma perspectiva relacional, na qual cada situação somente pode ser apreciada no âmbito de uma relação jurídica e à luz da situação jurídica a ela contraposta. Percebe-se um sistema no qual relacionam-se não partes ativas e passivas; antes, interagem entre si núcleos de interesses, ou situações jurídicas representadas por seus respectivos titulares.

Em uma visão conforme aos princípios de solidariedade social, o conceito de relação representa a superação da tendência que exaure a construção dos institutos civilísticos em termos exclusivos de atribuição de direitos. O ordenamento não é somente um conjunto de normas, mas também um sistema de relações: o ordenamento, no seu aspecto dinâmico, não é nada mais que o nascimento, a realização, a modificação e a extinção de relações jurídicas, isto é, o conjunto das suas vicissitudes (PERLINGIERI, 2007, p. 728-729).

Em relações jurídicas, as partes envolvidas são consideradas sujeitos de direito munidas de direitos subjetivos descritos nas normas de direito objetivo. As pessoas, então, por serem consideradas sujeitos de direito, buscariam nas normas objetivas seus direitos subjetivos, estaticamente definidos, e desse modo figurariam em relações jurídicas.

Conforme Maria Helena Diniz (2007, p. 113-114), sujeito de direito seria o indivíduo que “é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer, através de uma ação, o não-cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na produção de uma decisão judicial”. Pode-se dizer, então, que o sujeito de direito compõe a estrutura da relação jurídica, e que seus deveres, pretensões ou titularidades7 encontram amparo em norma objetiva.

Ainda, como efeitos de fatos jurídicos (entendidos esses efeitos por situações jurídicas), encontram-se o ônus e a faculdade. Consiste o ônus na “necessidade que o agente tem de comportar-se de determinado modo para realizar interesse próprio, como, por exemplo, o ônus da prova para quem deseja defender judicialmente um direito seu (AMARAL, 2006, p. 200). Doutro lado, as faculdades jurídicas traduzem-se pela “possibilidade de atuação jurídica que o direito reconhece na pessoa que se encontra em determinada situação. Por exemplo, o direito de propriedade, (CC, art. 1228), confere ao titular as faculdades de usar, gozar e de dispor da coisa (AMARAL, 2006, p. 202).

Não obstante, quando colocadas sob discussão situações existenciais, relacionadas à dignidade humana ou a direitos fundamentais8, por exemplo, sabe-se que as disposições normativas correspondentes são principiológicas. E os princípios, ao contrário de regras, possuem grau de abstração elevado, exigindo-se do intérprete esforços interpretativos holísticos. Por esse motivo, indaga-se a respeito de quais seriam, exatamente, os deveres, pretensões e titularidades do sujeito de direito advindas dos princípios, e mesmo de conceitos jurídicos indeterminados (como a boa-fé objetiva), naturalmente polissêmicos.

De antemão, percebe-se que a noção clássica da relação jurídica impossibilita esse tipo de análise. Não seria possível, considerando-se a estática posição das partes envolvidas na relação jurídica, retirar deveres, pretensões e titularidades do direito objetivo pautado em regras claras, até mesmo porque o intérprete não as encontraria. Cabe ao jurista, nessa situação, abrir mão da subsunção e partir à prática do método normativo-estruturante9.

Esclareça-se, outrossim, que não se pretende dizer ser impossível o reconhecimento de aplicação de princípios ou da proteção de direitos fundamentais dentro da relação jurídica. Expõe-se, no intuito de melhor definição dos institutos jurídicos, que o caminho adequado seria superar a noção de relação jurídica e avançar à situação jurídica, sendo este último modelo adequado ao reconhecimento de normas carregadas de teor valorativo.

Até mesmo a noção corrente acerca da norma acompanharia a evolução teórica. As normas não seriam “[...] textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos” (ÁVILA, 2015, p. 50). Nesse ponto, em muito relaciona-se o núcleo de interesses – acoplado à situação jurídica –, com o método de interpretação, pois de fato, se não há disposição objetiva evidente, cabe ao intérprete criar a norma mediante o exercício interpretativo sistemático.

Verifica-se, desse modo, que o conjunto normativo de direitos subjetivos não é suficiente para alcançar e resolver todas as nuances das relações jurídicas, havendo um extensivo rol de situações jurídicas que não se verificam pela base normativa, mas que existem no mundo real, distante do mundo ideal do direito (PONA; AMARAL, 2016, pp. 56-57).

A existência de uma situação com implicações jurídicas, à revelia da disposição normativa, não impede o exercício de direitos e deveres inerentes ao núcleo de interesses imiscuído ao agente. Analisando-se a extensão das previsões normativas e a pluralidade de condutas humanas, tem-se que:

Em diversas situações, as previsões normativas esgotam e esmiúçam, detalham à exaustão as possibilidades jurídicas consequentes de determinado fato, ato ou situação. Essa “qualificação atributiva”, vezes tantas é suficiente para exaurir o escopo normativo pretendido pelo legislador para aquela conformação fática. As pretensões legislativas de tutela esgotam-se diretamente a partir da incidência da norma ao fato, previstas todas as cenas e atos sequentes da teatralidade jurídica (PONA; AMARAL, 2016, p. 67).

A vida humana não é, e não poderia ser revestida de teatralidade: as partes não praticam apenas o que está predeterminado em lei. Aliás, aponte-se que o Estado Democrático de Direito pressupõe e ampara-se nas decisões justas, corretas e acertadas, em detrimento do normativismo e de princípios pretéritos como o dura lex sed lex (a lei é dura, mas é a lei).

Compreende-se que determinados resultados sejam pretendidos pelos agentes, ainda que em afronta ao conjunto de leis, em razão do poder de autodeterminação dos indivíduos e suas escalas valorativas morais e éticas, que não necessariamente irão se amoldar à vontade ou previsão do legislador. Autodeterminação, na acepção ora utilizada, diz respeito ao “poder de cada indivíduo gerir livremente a sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências” (RIBEIRO, 1999, p. 22).

O desenvolvimento das situações jurídicas, nesse sentido, necessariamente passa por “ações e comportamentos exclusivamente a cargo dos sujeitos envolvidos por meio de suas manifestações volitivas, as quais, em razão do poder jurígeno que o ordenamento lhes concede, predispõem resultados [...] a serem alcançados” (PONA; AMARAL, 2016, p. 68). Ou seja, basta a manifestação dos agentes envolvidos com algum fato jurídico para que se torne visível os centros de interesses que, correlacionados, compõem a situação jurídica.

As situações jurídicas são, assim, conjuntos de direitos ou de deveres que se atribuem a determinados sujeitos, em virtude das circunstâncias em que eles se encontram ou das atividades que eles desenvolvem. Surgem como efeito de fatos ou atos jurídicos, e realizam-se como possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito. Constituem uma categoria geral abrangente, que compreende as diversas manifestações de poder e de dever contidas na relação jurídica, como o direito subjetivo e o dever jurídico [...]. O conceito de situação jurídica é, por isso, inseparável do de relação jurídico, que se pode também definir como a síntese de situações jurídicas correlatas (AMARAL, 2006, p. 186).

Tocante à problemática apresentada – relacionada ao caso prático –, observa-se verdadeiro entrave à tomada de uma decisão jurisdicional adequada, do ponto de vista do convencimento motivado do magistrado e da hermenêutica jurídica, em razão da vinculação da decisão à base normativa aplicável, sem respaldo legal às situações jurídicas. “Sem a previsão objetiva inexiste, em consequência, a faculdade de agir de tal modo, ainda que se preveja na Constituição da República que a liberdade de ação é a regra a ser observada” (PONA; AMARAL, 2016, p. 68).

Pode-se afirmar serem as situações jurídicas, então, efeitos de atos ou fatos jurídicos. São designadas por núcleos de interesses que se contrapõem numa perspectiva relacional. Assim colocado o estudo, poder-se-ia pensar que o que se busca é visualizar quais direitos e deveres coexistiriam nesse complexo de interesses formado pelos núcleos, de modo a se conferir proteção, por exemplo, a direitos fundamentais. Contudo,

[...] mais importante do que identificar quais prerrogativas e quais deveres encontram-se ‘no interior’ de uma situação subjetiva e quais formam, por si mesmos, situações subjetivas autônomas é identificar que toda situação jurídica subjetiva tem por núcleo determinado interesse, e que a nenhum centro de interesses é possível atribuir apenas situações de vantagem ou de desvantagem (SOUZA, 2015, p. 9)

Com base nas considerações realizadas, percebe-se a necessidade pungente de abarcamento das situações jurídicas pelo ordenamento jurídico brasileiro, aptas a ensejarem uma interpretação principiológica e menos restritiva das outrora intituladas relações jurídicas. Prestigia-se a autonomia privada e o poder de autodeterminação dos indivíduos, para além de buscar o que seria formalmente justo – o respeito à lei –, se conferir verdadeira proteção aos direitos fundamentais de pessoas que se encontrem em determinadas situações.

Alinhando-se a discussão à questão do restabelecimento do poder familiar, percebe-se que referido poder adviria de um estado pessoal. Especificamente, trata-se do status familiae, do qual emanam direitos e deveres inerentes a esse estado pessoal, que “é reputado situação jurídica subjetiva” (SOUZA, 2015, p. 10).

Na sociedade contemporânea, comprimir a pluralidade de resultados possíveis e decorrentes das ações volitivas dos indivíduos é o mesmo que comprimir o oceano em uma pequena garrafa d’água, deixando de fora tudo que não se adeque ao molde, ainda que, inevitavelmente, tudo o que é deixado de fora, em última análise, seja da mesma natureza, embora inexistentes previsões legais correspondentes. Espera-se, por conseguinte,

[...] corrigir a miopia e reconhecer as exigências postas em frente ao intérprete do fenômeno jurídico, para que abdique da pretensão de infinita adequação [...] do direito subjetivo, e se abra às possibilidades de tutela da pessoa permitidas pela categoria das situações jurídicas (PONA; AMARAL, 2016, p. 71).

Trilhado o perpassar conceitual, iniciado na jurídica e – não terminado – mas reiniciado, a partir da situação jurídica, nota-se que muito embora ausentes previsões legais objetivas para o restabelecimento do poder parental, afigura-se plausível reconhecer que a genitora destituída do poder familiar não é mais considerada mero sujeito de direito (para a qual inexistiria previsão legal objetiva clara).

Antes, considerar-se-á a genitora como inserta numa situação jurídica, a condição de titular de um centro de interesses. Assim, como as situações jurídicas são formadas por centros contrapostos, afirma-se a correlação obrigacional e existencial entre sua prole, o Estado, e até mesmo a sociedade, cada qual titular de um centro de interesses. Não seria possível, consequentemente, qualquer tomada de decisão que desconsiderasse todo esse complexo de direitos e deveres.

No item seguinte, à luz dos conceitos trazidos e por meio de um caso prático, será explicitado como determinadas situações podem ser marginalizadas em razão da adoção das restritivas noções alinhadas à clássica noção de relação jurídica, assim como pela ausência de previsão legal sobre as situações jurídicas.

Compreende-se por mais adequado adotar-se a noção de situação jurídica, em complementaridade (e não em detrimento) à relação jurídica. Diante da necessária proteção de direitos fundamentais explicitados por meio de princípios, o intérprete que apreender as implicações da situação jurídica e utilizar-se de métodos interpretativos adequados, como o normativo-estruturante, reunirá melhores condições de buscar a efetivação dos postulados constitucionais relacionados aos direitos fundamentais.

3. A (IM)POSSIBILIDADE DE RESTABELECIMENTO DA AUTORIDADE PARENTAL MEDIANTE O RECONHECIMENTO DO INTERESSE JURIDICAMENTE RELEVANTE

Vislumbrada a noção relativa à situação jurídica, doravante utilizada para interpretação e aplicação do direito, afigura-se imprescindível conceituar, sinteticamente, os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, que significam eixos importantes à construção de normas a partir de casos concretos, sobretudo quando não há disposição normativa objetiva, nos moldes clássicos, a ser aplicada.

Direitos fundamentais são os valores básicos ao desenvolvimento da vida em sociedade. Gozam de aplicação imediata, hierarquia constitucional e estão ligados diretamente à dignidade da pessoa humana. Pode-se compreender os direitos fundamentais como as disposições constitucionais que visam assegurar, por meio da proteção de diversos e específicos direitos, a própria dignidade da pessoa humana. Estão os direitos fundamentais expostos em disposições normativas “[...] intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder positivadas no plano constitucional de determinado Estado democrático de Direito” (MARMELSTEIN, 2016, p. 18).

Quanto à dignidade humana, trata-se de característica intrínseca à pessoa e se relaciona ao respeito que é inerente a todo ser humano, e deve ser observado por todos, seja por parte do estado ou de qualquer pessoa. Antecede a qualquer direito, pois não é atribuída ao sujeito, e é ínsita à natureza humana. Sendo assim, não há pessoa sem dignidade (ROSENVALD, 2005, p. 8).

A dignidade humana, para além de significar um valor fundamental, possui status de verdadeiro princípio jurídico constitucional (BARROSO, 2010, p. 10). Explicitada sua natureza jurídica, pode-se dizer, ainda, conferindo-se ares de concretude a referido princípio, que este possui um substrato material decomponível em quatro postulados: i) o sujeito reconhece no outro alguém igual a si próprio (igualdade); ii) este outro merece o mesmo respeito à integridade psicofísica; iii) os sujeitos são iguais são dotados de vontade livre e autodeterminação (liberdade); iv) e por fim, as pessoas integram um corpo social, garantindo-se sua não marginalização (solidariedade) (MORAES, 2006, p. 119).

Adentrando-se à questão da família, a Constituição Federal de 1.988 passou a compreender o núcleo familiar, em seu sentido amplo, como um direito fundamental, elencando-a em seu corpo normativo e explicitado a necessidade de sua proteção. Como esclarece Rolf Madaleno (2013, p. 43): “No conteúdo de fundamental está embutida a ideia de situação jurídica essencial à realização da pessoa humana”.

Destarte, a família tem como eixo o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, e possui como objetivo assegurar a comunhão plena de vida de todos os integrantes da sociedade familiar (MADALENO, 2013, p. 46). Note-se que a base conceitual afeta à família já situa o intérprete em face de uma verdadeira situação jurídica – em muito relacionada ao status familiar, como alhures pontuado.

A Constituição Federal de 1.988, em seus artigos 226 e 227, estabeleceu a família como base da sociedade, afirmou a proteção e assistência por parte do Estado e determinou, como dever da família e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente a convivência familiar. Amplificou, ainda, o conceito de família e a identificou como um direito fundamental constitucional (PEREIRA, 2007, p. 15).

Nessa linha de raciocínio, os direitos fundamentais devem receber do Estado proteção jurisdicional, pois só assim valerão inteiramente como direitos, mesmo que em termos e graus diversos (MIRANDA, 2000, p. 257). Dessa forma, tais direitos possuem incidência instantânea e imediata exigência, em especial no direito de família, pois permitem a concretização da nova diretriz constitucional que esboçou a família contemporânea amparada no respeito à plena liberdade e felicidade de cada um dos seus componentes (MADALENO, 2013, p. 45).

Os direitos fundamentais como garantias institucionais é a terceira possibilidade de positivação de direitos sociais. A constitucionalização das garantias institucionais traduzir-se-ia numa imposição dirigida ao legislador, obrigando-o, por um lado, a respeitar a essência da instituição e, por outro lado, a protegê-la tendo em atenção os dados sociais, económicos e políticos (exs.: medidas protectoras da família, da saúde pública, administração local). Não se trata, porém, ainda, do reconhecimento de direitos subjectivos, embora as garantias institucionais sejam elementos importantes da interpretação da lei e da Constituição no âmbito dos direitos sociais (CANOTILHO, 2003, p. 475).

Assim esclarecidos os direitos fundamentais, entende-se pela supremacia formal e material de seus postulados. Consequentemente, o exercício hermenêutico acerca das normas infraconstitucionais deve atentar-se para essas disposições normativas de elevado teor axiológico. Noutras palavras, exige-se atenção do jurista para interpretação e aplicação do direito quando a norma que se pretende construir (por parte do magistrado) encontra suas bases em princípios.

Volvendo-se a discussão ao âmbito do direito privado, ramo no qual encontram-se regulamentadas as normas, procedimentos, modalidades e institutos pertencentes ao direito de família, o Código Civil de 2002 estabelece a forma pela qual a proteção dos filhos deve ser realizada perante a sociedade. Perceba-se que por meio da proteção dos filhos, indiretamente, atinge-se a defesa da própria família.

Trata-se do poder parental ou familiar, sendo esta uma imposição aos responsáveis que se desdobra nos deveres de proteção aos filhos. Esse poder encontra bases na necessidade dos filhos de proteção e cuidado. A necessidade de proteção possui lastro no direito fundamental da criança e do adolescente ao direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, norma constitucional de incidência instantânea (MADALENO, 2013, p. 677).

O poder familiar está previsto nos artigos 1.630 a 1.633 do Código Civil de 200210. Pode ser compreendido como o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, no qual se incluem o dever de sustento, de guarda e de dar educação. Para Paulo Lôbo (2012, p. 295) o poder familiar é o exercício da autoridade dos pais sobre os filhos, nos interesses destes. Configura uma autoridade temporária, exercida até a maioridade ou emancipação dos filhos. O poder familiar é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível (DIAS, 2013, p. 436).

Antigamente11, nominava-se o poder familiar como o pátrio poder, pois o suposto poder era concedido apenas ao pai como chefe da família. Com a despatrimonialização e constitucionalização do direito de família e a igualdade entre homens e mulheres, a legislação, consagrando-se a igualdade na família e a dignidade da pessoa humana, passou a conceder os mesmos direitos e deveres entre pai e mãe (COMEL, 2003, pp. 40-41).

Já hodiernamente, o poder familiar vem sendo denominado de poder parental ou autoridade parental12, pelo fato de que a finalidade do instituto é o melhor interesse dos filhos, como explicitado pelo artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente13, informando-se que cabe aos pais no interesse da prole cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais (MACIEL, 2014, p. 188).

Desta forma, esse poder conferido pela lei se transmuda em uma situação complexa a qual coexistem deveres, pretensões, titularidades, ônus e faculdades em constante correlação entre os centros de interesses. Segundo Pietro Perlingieri (2007, p. 258): “O pátrio-poder, visto como um poder-sujeição, está em crise, porque não há dúvidas de que uma concepção de igualdade, participativa e democrática da comunidade familiar, a sujeição, entendida tradicionalmente, não pode continuar a realizar o mesmo papel”.

Assim, o exercício do poder parental deve se concentrar nos filhos, voltando-se a estes, inicialmente, a tutela jurídica dos direitos e interesses. A alteração do conceito de pátrio poder para poder parental, nesse contexto, significa não apenas a mudança da nomenclatura ou o poder compartilhado. Reconstruiu-se o próprio instituto, estabelecendo-se que o interesse dos pais está condicionado ao interesse dos filhos (COMEL, 2003, p. 55). Ante a natureza das relações envolvidas, vislumbram-se sobretudo os interesses existenciais, a serem individualizados e protegidos à luz de circunstâncias concretas (PERLINGIERI, 2007, p. 258).

Aponte-se que o poder familiar não é absoluto e intangível e se sujeita à fiscalização do Estado (COMEL, 2003, p. 262). Nesse contexto, a intervenção judicial na família deve ocorrer excepcionalmente e com a finalidade de eliminar os obstáculos, abusos e desvios que possam, de algum modo, afrontar direitos fundamentais dos titulares de centros de interesses envolvidos na situação jurídica familiar.

Previu o legislador, por meio do artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a possibilidade aos pais de recorrerem à autoridade judiciária para a solução da divergência ou discordância quanto ao exercício da autoridade parental, e em sentido semelhante consta a disposição do artigo 1.631, parágrafo único do Código Civil de 2002 (LÔBO, p. 304).

Sendo a autoridade parental um complexo de correlações entre direitos e deveres, não se limitando a análise do poder atribuído ao sujeito, e sim, ao mesmo tempo, dos deveres e obrigações; o Código Civil, em seu artigo 1.63514 e seguintes estabelece as hipóteses de perda e suspensão do poder familiar dos pais quando violado um interesse legítimo da criança ou adolescente que deveria ser tutelado pelos genitores (SCAFF, p. 580).

A extinção do poder familiar ocorre nas hipóteses previstas no artigo 1.635 do Código Civil, sendo que os incisos I (morte do pai ou filho), II (maioridade) e III (emancipação), ocorrem de forma automática e os incisos IV (adoção) e V (decisão judicial), este último lido em conjunto com artigo 1.638 da lei civil15, dependem de decisão judicial. Doutro lado, a suspensão do poder familiar decorre dos casos previstos no artigo 1.637 do Código Civil, quando os genitores abusarem de sua autoridade, faltando com os deveres ou arruinando os bens dos filhos, e necessariamente depende de decisão judicial.

Existem ainda as hipóteses de suspensão/extinção do poder familiar em decorrência da sentença penal condenatória. O artigo 1.637 do Código Civil de 2002 determina que o poder familiar é suspenso por sentença irrecorrível em virtude de crime cuja pena não exceda a dois anos. Já o Código Penal, no artigo 92, inc. III, prevê como efeito específico da condenação a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra o filho.

Assim, a legislação é clara quanto à possibilidade de intervenção estatal na hipótese de existirem conflitos entre o centro os centros de interesses que se contrapõem, ou seja, quando os interesses existenciais ou patrimoniais dos filhos entrarem em colisão com os interesses de seus genitores ou responsáveis.

Nas relações genitores filhos é particularmente útil o recurso aos arts. 330 e 333 do Cód. Civ., não tanto pelo seu perfil sancionatório, que pode até culminar na perda do pátrio poder, quanto pela promoção do interesse do menor em qualquer situação na qual possa emergir um conflito (PERLINGIERI, 2007, p. 259).

Dessa forma, a princípio, a previsão legal tem uma finalidade protetiva dos direitos da criança ou adolescente, que via de regra é a parte vulnerável (COMEL, 2003, p. 284). Porém, as relações familiares são complexas, instáveis e se modificam constantemente, sem que o direito objetivo abarque todas as questões relacionadas ao direito de família.

Embora esteja aparentemente bem regulamentada do ponto de vista legislativo, na prática não se apresenta tarefa fácil, fundamentalmente por duas razões: porque deve sempre se revestir de caráter excepcional (...) e em segundo lugar, porque o interesse prevalente do menor impõe que deve conciliar-se a privação com critério relativos de concreta oportunidade e nunca objetivos ou abstratos (COMEL, 2003, p. 284).

Assim construído o sistema civil-constitucional que estabelece a proteção à criança e ao adolescente, vigem regras ligadas a hipóteses de suspensão e de perda do poder familiar. Porém, as legislações de cunho cível e penal não preveem o restabelecimento do poder familiar para caso algum. Pela análise semântica do termo suspensão, conclui-se de imediato pela possibilidade de sua revogação, por se entender que se trata de estado provisório das coisas.

Já no caso de perda, pela propriedade do termo, a princípio, não caberia o seu retorno. Não obstante, a doutrina16 se inclina pela possibilidade de revogação e restabelecimento do poder parental. Ressalte-se, a título de argumento, que o Código Civil argentino no artigo 308 traz previsão expressa do restabelecimento17. Em referida disposição normativa alienígena, percebe-se que o legislador anteviu a possibilidade de alteração nas circunstâncias fáticas que justificariam a reestruturação formal da unidade familiar.

Considerando-se toda a temática do presente artigo, aponte-se que a letra da lei determina a perda e suspensão do poder familiar nos casos elencados e citados. Contudo, emerge a necessidade de se adotar posições referente à ausência de previsão legal acerca do restabelecimento do poder familiar. Deve-se raciocinar, de maneira criteriosa, sobre as soluções possíveis, a partir do momento em que a situação de fato não se amolda à previsão legal, ou seja, quando após a perda do poder familiar, determinada como efeito automático da sentença criminal ou por decisão judicial, a genitora retoma os cuidados dos filhos e passa a exercer, de fato, os poderes inerentes à autoridade parental.

No caso, apresenta-se uma aporia a ser solucionada pelo intérprete. Ao final da discussão, e quando encontrada a solução, a decisão jurisdicional cabe ao magistrado. O que raciocínio realizado, considerando-se o caso concreto e os preceitos referentes à situação jurídica, direciona a discussão à ideia de que para se conferir proteção aos direitos fundamentais, sobretudo em prol da criança ou do adolescente, afigura-se imprescindível compreender a situação jurídica na qual estão todos os envolvidos (mãe, filhos, Estado e sociedade)18.

De fato, o poder familiar não diz respeito apenas às relações entre pais e filhos, pois também interessam suas repercussões patrimoniais e extrapatrimoniais em relação a terceiros (LÔBO, 2012, p. 312). A família cria relações internas e externas com deveres genéricos e obrigações específicas de comportamento e poderes (PERLINGIERI, 2007, p. 143). Daí, justamente, percebe-se a conexão existente entre os centros de interesses correlatos, tal qual a existente entre a família e a sociedade.

Com relação ao caso concreto sob análise, retrata-se a questão da genitora que teve a perda do poder familiar decretada após sentença criminal, em que foi condenada a quatro anos de reclusão pelo fato de ter permitido que o padrasto praticasse atos libidinosos o filho.

Ocorre que, após o cumprimento de parte da pena, a genitora retomou, no plano fático, a autoridade parental sobre os filhos, e postulou o restabelecimento desse poder. No caso telado, ainda, constatou-se o natural desdobramento do poder familiar, como se jamais tivesse sido suprimido por ordem judicial. Ainda, não foram verificados prejuízos à formação e ao desenvolvimento dos filhos. Antes, a preservação da unidade familiar lhes propicia melhores condições de vida.

Contudo, como já ressaltado, não há previsão legal e tampouco qualquer instrumento jurídico clássico adequado, bem como não há direito objetivo previsto, que autorize o restabelecimento do poder familiar. O status de família, se não conferido pelo Estado, impede a genitora de exercer, em benefício e no interesse dos filhos, deveres inerentes ao seu estado de mãe, que irradiam desse centro de interesses por ela titularizado. O direito objetivo não a socorre, mas existem centros de interesses em questão.

Os filhos possuem interesses existenciais e patrimoniais que precisam ser tutelados, sendo necessário que alguém se responsabilize pelo seu desenvolvimento emocional, espiritual e material. No tocante à genitora, também há interesses em resguardar a unidade familiar e a proteção dos filhos em face de terceiros. Há uma situação jurídica subjetiva em relação ao chamado status ou estado pessoal, no caso o status familiae, que se refere às relações familiares e suas consequências jurídicas.

O juiz não poderá negar tutela a quem peça garantias sobre um aspecto de sua existência que não tem previsão específica, porque aquele interesse já tem uma relevância ao nível de ordenamento, e portanto, uma tutela também em via judicial. [...] Não se pode esconder-se atrás do fato de que não existe o instrumento típico, previsto expressamente, para tutelar aquele interesse (PERLINGIERI, 2007, p. 156).

Diante desse quadro, emergem possibilidades para solução da questão, seja pela compreensão de que não há direito objetivo a socorrer a mãe, e, portanto, não poderia esta exercer direitos e interesses como se detivesse autoridade parental; ou poderia haver o reconhecimento e o consequente restabelecimento em virtude da necessidade de se concretizar juridicamente um panorama fático evidenciado.

Destarte, analisa-se a situação de forma ampla, sistêmica, e não apenas baseada no direito subjetivo ou objetivo. A família deve ser considerada como um local no qual se desenvolve a pessoa e suas potencialidades. Ou seja, o ambiente familiar é preenchido por diversos núcleos de interesses em desenvolvimento. Deixa-se de analisar a família como um conjunto de singulares relações jurídicas unidirecionais; e passa-se a notar o desenvolvimento familiar em sua multiplicidade fenomênica, ou seja, em suas específicas situações jurídicas.

Constatando-se que a genitora, mesmo por ordem judicial privada da autoridade parental, exerce todos os poderes e deveres normalmente; e que não há riscos para os filhos, percebe-se uma situação jurídica passível de tutela e reconhecimento, ainda que ausente a previsão legal nesse sentido. Deve-se tomar o magistrado por ator prudente em meio ao cenário de proteção aos direitos fundamentais, compreendendo-se o seguinte: “O papel da judicatura não é guiar-se pelo sentimentalismo; e sim, manter o equilíbrio dos interesses, e dentre estes distinguir os legítimos dos ilegítimos” (MAXIMILIANO 2011, p. 69).

Posto isso, na medida em que as prerrogativas conferidas ao seu titular, no caso da genitora, encontram-se acompanhadas de um necessário direcionamento funcional em prol do melhor interesse da parte que se sujeita ao poder jurídico – os filhos –, o reconhecimento do exercício dessa situação subjetiva reputa-se adequado. A ausência de previsão legal nesse sentido não significa legítimo óbice ao reconhecimento da situação; sob pena de se negar vigência à estrutura principiológica existente, inclusive.

A relação jurídica existente entre a genitora e o filho encontra-se fulminada por força da ordem judicial, mas ainda assim, atribuindo-se um perfil funcional à relação, pode-se compreender que os agentes envolvidos compreendem centros de interesses, e entre esses não é estática a distribuição de direitos e deveres (PERLINGIERI, 2008, p. 34). Nessa perspectiva jurídico-relacional, encontram-se, não em polos opostos, mas no mesmo campo de efeitos jurídicos, variadas situações jurídicas subjetivas, compostas por centros de interesses titularizados pelos agentes envolvidos.

Entre as situações jurídicas subjetivas, o poder jurídico corresponde à possibilidade de interferência na esfera jurídica alheia e deve ser exercido tendo em conta a realização do interesse jurídico que lhe é contraposto, titularizado por aquele que a ele se sujeita (PERLINGIERI, 2007, p. 129). Nesse sentido, referido poder parental deve ser analisado, inevitavelmente, em contraposição à sujeição dos filhos.

O caso concreto analisado permite o emprego de concepções alinhavadas à situação jurídica, e dessa opção hermenêutica culminaria a possibilidade de restabelecimento do poder familiar19.

Por evidente, se a decisão judicial foi prolatada no sentido da perda do poder familiar, somente por meio de outro pronunciamento judicial de natureza revisional será possível restabelecê-lo. Para tanto, é fundamental que os motivos determinantes da destituição tenham findado e que o filho expresse inequívoca aceitação ao retorno para o convívio do pai biológico (MACIEL, 2014, p. 208).

Vislumbrada a ausência de disposições normativas objetivas e claras, pode-se compreender que da fusão entre a dignidade humana, direitos fundamentais, princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e disposições normativas referentes aos deveres dos pais perante filhos, resulta uma norma atenta à real situação jurídica.

Nesse ambiente, realizada a análise acerca da compreensão sobre a situação jurídica, afigura-se possível o restabelecimento do poder familiar, mesmo quando a supressão tenha advindo como efeito de uma sentença criminal. Em que pese referida postura não encontre lastro em previsão normativa objetiva, faz-se necessário observar a realidade fática, retirando-se amarras do direito objetivo e permitindo-se o revigoramento de um sistema outrora baseado exclusivamente no direito subjetivo, e hoje atento às situações jurídicas.

4. CONCLUSÃO

Ambientada a situação jurídica no plano da interpretação holística do sistema jurídico, abre-se caminho a conceder amparo judicial concreto às pessoas, não apenas considerando-as sujeitos de direitos. Antes, pode-se considerá-las centros ou núcleos de interesses que se inter-relacionam juridicamente por meio do exercício de direitos, deveres, poderes, ônus e faculdades, recíproca e dinamicamente.

Nesse contexto, com relação à análise casuística que sustentou a linha argumentativa discorrida, pode-se dizer que a mãe considerada como um centro de direitos e interesses, em face dos filhos, também entendidos como núcleos de mesma ordem, mesmo quando retirada sua autoridade parental, pode – e deve – exercer deveres que são inerentes à indissociável situação fática de ser considerada a genitora.

Assente-se que a evolução das noções jurídico-relacionais, que permitem a mudança do enfoque das relações jurídicas às situações jurídicas, possibilita a interpretação no sentido de se vislumbrar a mãe não apenas como sujeito de direitos. Quando realizada a interpretação pelo método normativo-estruturante, pode-se conceber a genitora como titular de um centro de interesses.

Dessa compreensão, abrem-se portas para se identificar os poderes e deveres da genitora em relação aos seus filhos mesmo se suprimida a autoridade parental. E como consectário lógico desse vislumbre pode ser o restabelecimento do poder parental, mesmo que inexistente previsão legal objetiva nesse sentido. Percebe-se que a adoção das noções advindas da situação jurídica permite impulsiona novas interpretações, de maneira a serem garantidos direitos fundamentais, e até mesmo a dignidade da pessoa humana, sendo que esta última, princípio constitucional, necessita de interpretação holística para se aperfeiçoar no plano concreto.

Posta desse modo a questão, entende-se por adequado e possível ao magistrado, no exercício de seu poder decisório, e dissociado de amarras de cunho estritamente objetivo, realizar a interpretação sistêmica e reconhecer o interesse juridicamente relevante da mãe e dos filhos. Esse restabelecimento da autoridade parental significa admitir a porosidade da norma jurídica – esta compreendida como resultado da interpretação do fato e do ordenamento jurídico como um todo, e não mais da simples conexão fática à disposição normativa estática.

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1 Doutora em Direito das Relações Sociais, Área de Concentração em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Mestrado em Direito Negocial (2002) e Graduação em Direito (1989) pela Universidade Estadual de Londrina . Professora do Programa de Mestrado em Direito Negocial e do Curso de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Estadual de Londrina. Professora Colaboradora-Convidada do Curso de Pós Graduação em Direito Civil Contemporâneo do Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Sócio-Econômicas. Email: anaclaudiazuin@live.com

2 Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina, do Estado do Paraná. Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade de Direito Damásio.. Email: paulociola@gmail.com

3 Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Civil, Processo Civil e Empresarial pela Universidade Gama Filho. Pós-graduada pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. E-mail: nayara.rangel@yahoo.com.br.

4 “De início, a autonomia privada foi compreendida como sendo a expressão de uma liberdade, de uma faculdade individual; já, modernamente, reduzido o papel da vontade individual, a autonomia privada recebeu uma conotação social, passando a ser visualizada como uma manifestação do poder de criar normas, atribuído pelo ordenamento jurídico” (CATALAN, 2002, p. 435). Ressalte-se que “a autonomia privada não designa toda a liberdade, nem toda a liberdade privada, nem sequer toda a liberdade jurídica privada, mas apenas um aspecto desta última: a liberdade negocial (PRATA, 1982, p. 13). Nesse último sentido, nota-se que a autonomia privada deixa espaço às partes apenas quanto à liberdade relacionada aos negócios jurídicos que celebram.

5 O dirigismo contratual, como uma postura estatal que se acentuou após a constatação dos desequilíbrios sociais evidenciados sob as influências do modelo de Estado liberal vigente século XIX, pode ser entendido por uma prática na qual “O Estado intervém, então, nas relações contratuais, buscando garantir um relativo equilíbrio, o que faz com fundamento na ordem pública e na boa-fé, objetivando salvaguardar os interesses dos vulneráveis. Com isso, o individualismo foi paulatinamente sendo relegado a um papel secundário, visto que a necessidade de intervenção legislativa estava em desconformidade com a estrutura doutrinária concebida no século XIX. Foram editadas inúmeras leis que impuseram limites à liberdade contratual, o que se deu pela expressa vedação de determinadas cláusulas e pela definição de algumas regras mínimas. Desse modo, em certos setores que interessavam a toda a coletividade e ao Estado, passou a existir um dirigismo contratual” (ZANINI, 2017, p. 78).

6 Se para os atos jurídico stricto sensu já estão previstos em lei os efeitos; para os negócios jurídicos, sob a perspectiva clássica, os efeitos imediatos (disposições legais objetivas aplicáveis) já estariam inarredavelmente previstos em lei, igualmente. Somente disporiam as partes sobre os efeitos mediatos, relacionados aos bens da vida que pretendem conquistar.

7 Compreenda-se o dever jurídico como “[...] a necessidade de se observar certo comportamento, positivo ou negativo, a que tem direito o titular do direito subjetivo. A este se contrapõe. Se for descumprido, sujeita-se o infrator às sanções preestabelecidas” (AMARAL, 2006, p. 200). A pretensão “[...] pressupõe o direito subjetivo e o do correspondente dever. Mas existem direitos que não dão origem a pretensões, os direitos potestativos, a que não correspondem deveres. O conceito de pretensão é, assim, útil para se distinguirem os direitos subjetivos dos direitos potestativos. Estes não têm deveres, não podem ser lesados, logo, não geram pretensão” (AMARAL, 2006, p. 204).

8 Sobre a dignidade da pessoa humana, esclareça-se: “O Direito do século XXI não se contenta com os conceitos axiológicos formais, que podem ser utilizados retoricamente em qualquer tese. Mal o século XX se livrou do vazio do “bando dos quatro” – os quatro conceitos jurídico indeterminados: função social, ordem pública, boa-fé, interesse público –, preenchendo-os, pela lei, doutrina e Jurisprudência, com alguma diretriz material, que surge, agora, no século XXI, problema idêntico com a expressão ‘dignidade da pessoa humana’! ” (AZEVEDO, 2001, p. 112). Os conceitos acerca da dignidade humana e dos direitos fundamentais serão explicitados no item seguinte.

9 Segundo Friedrich Müller (2005, p. 38), precursor dessa teoria hermenêutica, “o teor literal de uma prescrição juspositivista é apenas a “ponta do iceberg”. De modo esclarecedor, José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 1213) explicita no que consiste o método normativo-estruturante: “Os postulados básicos da metódica normativo-estruturante são os seguintes: (1) a metódica jurídica tem como tarefa investigar as várias funções de realização do direito constitucional (legislação, administração, jurisdição); (2) e para captar a transformação das normas a concretizar numa decisão prática (a metódica pretende-se ligada à resolução de problemas práticos); (3) a metódica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e com as funções jurídico-práticas; (4) elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (5) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (6) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um domínio normativo, isto é, um pedaço de realidade social que o programa normativo só parcialmente contempla; (7) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (= elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa)”.

10 Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores; Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo; Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos; Art. 1.633. O filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar exclusivo da mãe; se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo, dar-se-á tutor ao menor.

11 Esclarece Fachin: “Instaura-se, progressivamente, o patriarcado. Confere-se ao pai a direção unitária da família, regida, pela lei da desigualdade, direção que implica diferenças nos papéis e funções da família. Desigualdade extremamente arbitrária, poder imotivado. Instala-se uma visão transpessoal da família, segundo a qual os interesses de uma unidade da instituição prevalecem sobre os membros” (FACHIN, 2003, P. 65).

12 A expressão que goza da simpatia da doutrina é autoridade parental. Melhor reflete a profunda mudança que resultou da consagração constitucional do princípio da proteção integral de crianças, adolescentes e jovens. Tal expressão indica que o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho (DIAS, 2013, p. 435).

13 Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

14 Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638.

15 Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

16 Por Maria Berenice Dias (DIAS, 2013, p. 447) a perda do poder familiar não deve implicar a extinção no sentido de afastamento definitivo ou a impossibilidade permanente.

17 Artigo 308 do Código Civil Argentino: La privación de la autoridad de los padres podrá ser dejada sin efecto por el juez si los padres demostraran que, por circunstancias nuevas, la restitución se justifica en beneficio o interés de los hijos.

18 Discursa Carlos Maximiliano (2011, p. 11): “Deixa ao aplicador do direito a tarefa de enquadrar o fato humano em uma norma jurídica, para o que indispensável compreendê-la bem, determinar-lhe o conteúdo. Ao passar do terreno das abstrações para o das realidades, pululam os embaraços”. Essa visão diz respeito, justamente, ao quão complicada é a tarefa do intérprete quanto se busca enquadrar um fato em uma norma jurídica. Mais complexa ainda é o exercício hermenêutico que envolve situações jurídicas, devendo o magistrado retirar dos efeitos de fatos jurídicos (das situações) o regramento que permitirá a elaboração da norma para o caso concreto.

19 “Bem-ameaçadas ficariam a tranquilidade pública e a ordem social, se ao juiz fosse lícito abster de julgar, ao invés de suprir as deficiências da lei com as próprias luzes e os ditames da razão e equidade” (MAXIMILIANO, 2011, p. 42). Certamente, referidos ditames da razão e equidade reclamam parâmetros hermenêuticos seguros, afastados do solipsismo por vezes notado na atividade jurisdicional.