AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE TRABALHO, A REFORMA TRABALHISTA E A PROIBIÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

LAS TRANSFORMACIONES EN LAS RELACIONES DE TRABAJO, LA REFORMA LABORAL Y LA PROHIBICIÓN AL RETROCESO SOCIAL

Thiago Penido Martins1

Virgínia Lara Bernardo Braz2

Recebido: 30/04/2018

Aprovado: 18/09/2018

 

RESUMO: Na conjuntura socioeconômica atual, em decorrência das transformações nas relações sociais, da intensificação da globalização e do neoliberalismo, os debates sobre a possibilidade de flexibilização dos direitos sociais têm ganhado repercussão social. Nesse contexto de mudanças sociais e transformações nas relações econômicas, sociais e de trabalho, o legislador se sente impulsionado a adotar medidas para modernizar a legislação trabalhista vigente, o que deve ser visto com cautela e parcimônia, para que as mudanças introduzidas não impliquem em restrição a efetividade de direitos e garantias trabalhistas constitucionalmente asseguradas. O artigo, portanto, mediante análise crítica e comparada das alterações introduzidas pela Lei Federal n.º 13.467/17, tem como objetivo aferir em que medida as principais alterações contribuíram para a evolução e modernização da legislação trabalhista e em que aspectos representam uma involução, ao contrariarem o princípio da proibição do retrocesso social.

Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Estado social. Crise. Mudanças na legislação trabalhista.

RESUMEN: En la coyuntura socioeconómica actual, como consecuencia de las transformaciones en las relaciones sociales, de la intensificación de la globalización y del neoliberalismo, los debates sobre la posibilidad de flexibilización de los derechos sociales han ganado repercusión social. En ese contexto de cambios sociales y transformaciones en las relaciones económicas, sociales y de trabajo, el legislador se siente impulsado a adoptar medidas para modernizar la legislación laboral vigente, lo que debe ser visto con cautela y parsimonia, para que los cambios introducidos no impliquen en restricción la efectividad de derechos y garantías laborales constitucionalmente aseguradas. El artículo, por lo tanto, mediante un análisis crítico y comparativo de las modificaciones introducidas por la Ley Federal nº 13.467 / 17, tiene como objetivo estudiar en qué medida las principales alteraciones contribuyeron a la evolución y modernización de la legislación laboral y en qué aspectos representan una involución por contrariar el principio de la prohibición del retroceso social.

Palabras clave: Derechos fundamentales sociales. Estado social. Crisis. Cambios en la legislación laboral.

1 INTRODUÇÃO

O Estado passou por consideráveis transformações ao longo dos últimos séculos, em especial, no que tange aos papéis que desempenha em relação aos indivíduos e toda sociedade. Essas mutaçõeso fruto da evolução da sociedade, que passa a demandar, na medida em que as relações sociais vão se tornando mais complexas, a tutela e proteção de novos direitos fundamentais.

Com o advento da segunda geração dos direitos fundamentais, passou-se a exigir do Estado que este não se limitasse à uma posição absenteísta, de não violação de direitos, para assumir um papel efetivo na consecução de prestações positivas em favor dos cidadãos, materializando o princípio da igualdade substancial, característica marcante do Estado de Direito Social ou Estado do Bem-Estar Social.

Os direitos sociais são direitos fundamentais caracterizados como liberdades positivas, que estabelecem garantias materiais aos indivíduos, devendo ser obrigatoriamente implementados pelo Estado para a concretização da igualdade social, com o desiderato de melhorar as condições de vida dos hipossuficientes, em especial, mediante a implementação de direitos e garantias aos trabalhadores.

Com a globalização, o Estado Social perde gradativamente seu domínio sobre as variáveis que influenciavam a economia, bem como a capacidade para formular e implementar políticas públicas, o que acaba por comprometer a efetiva garantia dos direitos sociais. A globalização e o neoliberalismo trouxeram à tona debates e análises acerca da necessidade de flexibilização dos direitos sociais, tema de grande repercussão social.

Diante das crises de ordem econômica, o legislador se sente impulsionado a adotar medidas que mitigam os direitos fundamentais sociais, em especial, os direitos sociais trabalhistas, recentemente alterados e reduzidos pela reforma trabalhista. O alto custo dos direitos sociais e a questão dos limitados recursos financeiros para garantir esses direitos, têm levado o legislador a propor medidas de flexibilização.

Ressalta-se que é justamente nos cenários de crise que os direitos sociais são capazes de potencializar o seu propósito e garantir a dignidade da pessoa humana. Por esse motivo, o legislador, de forma injustificada, não poderá reduzir o nível de concretização e efetividade das normas de proteção do trabalhador, uma vez que sua atuação é limitada pelo princípio constitucional da vedação ou proibição do retrocesso social.

Destaca-se que nem toda medida de flexibilização será considerada retrocesso social e, portanto, será vedada. Indispensável analisar o contexto no qual as alterações legislativas são realizadas, a existência de medidas compensatórias e as finalidades perseguidas, para, a partir de uma visão macro, definir se as alterações introduzidas implicam em redução da eficácia dos direitos sociais ou se está diante de alterações voltadas para a modernização da legislação e atendimento das novas realidades e demandas sociais, de modo a assegurar o desenvolvimento econômico.

O presente estudo tem por objetivo precípuo analisar algumas das alterações introduzidas na legislação trabalhista brasileira pela denominada reforma trabalhista, com o intuito de verificar se e em que medida as mudanças realizadas violam o princípio da vedação do retrocesso, em especial, avaliar se a reforma da legislação trabalhista teve o condão de mitigar os direitos dos trabalhadores assegurados na legislação infraconstitucional, protegidos pelo princípio constitucional da vedação ao retrocesso social, imprescindíveis à valorização do trabalho e à tutela da dignidade da pessoa humana.

Para tanto, será realizada uma análise crítica e comparativa acerca das alterações legislativas introduzidas pela Lei Federal n.º 13.467/17, no tocante a alguns dos principais direitos do trabalhador, sob a perspectiva do princípio constitucional da vedação ao retrocesso social, de modo a identificar em que medida as alterações promovidas poderão contribuir para evolução ou involução das relações de trabalho, sempre em busca da efetiva tutela e proteção dos direitos fundamentais do trabalhador insculpidos na Constituição da República.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA EVOLUÇÃO

“Os direitos fundamentais são todos aqueles direitos subjetivos que dizem respeito universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do status de pessoa, ou de cidadão ou de pessoa capaz de agir” (FERRAJOLI, 2011, p. 09). Para Silva (2002, p. 178), a expressão mais adequada para designá-los é direitos fundamentais do homem, pois se referem “a princípios que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, como também designam as prerrogativas e instituições que eles concretizam em garantia de uma convivência diga, livre e igual de todas as pessoas”.

São titulares dos direitos fundamentais as pessoas físicas e as pessoas jurídicas. Quanto às pessoas físicas, podem ser titulares dos direitos fundamentais os brasileiros natos e naturalizados, bem como os estrangeiros residentes no Brasil, estendendo-se, consoante posição do Supremo Tribunal Federal, aos estrangeiros de “passagem” pelo território nacional, a toda e qualquer pessoa que seja alcançada pelo ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, pela jurisdição do Estado brasileiro. Quanto às pessoas jurídicas, “estas também são titulares de direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza” (SILVA, 2002, p. 191).

Os direitos fundamentais são conquistas dos cidadãos ao longo da história decorrentes da evolução do indivíduo e da sociedade. Assim, as dimensões ou gerações dos direitos fundamentais referem-se à cronologia histórica destas conquistas. Demonstram o caráter cumulativo da evolução dos direitos no tempo, de forma que uma dimensão não substitui totalmente a outra, sendo que todas se complementam. Importante ressaltar que a doutrina abarca algumas outras dimensões, não havendo consenso no que tange às últimas. Porém, para os objetivos do trabalho, é suficiente a análise das três primeiras dimensões.3

A primeira dimensão ou geração se trata da dimensão de direitos individuais, relacionados à própria pessoa em sua individualidade. São direitos contemporâneos às Revoluções Liberais. Surgiram com a ideia de Estado de Direito, momento no qual os cidadãos se veem libertos frente ao Estado Absolutista que os assegurava apenas a paz e a segurança. Segundo Bobbio (1992, p. 32-33),

[...] a primeira geração contempla os direitos de liberdade, cujo fundamento é a limitação do poder estatal e a proteção da esfera privada da existência de cada indivíduo, estabelecendo para o Estado obrigações negativas, deveres de abstenção.

Tem-se, assim, a tutela do direito à vida, à intimidade, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade, a igualdade perante a lei, dentre outros. A segunda dimensão ou geração dos direitos cuida dos direitos sociais, econômicos, culturais, positivos, conquistados após a Revolução Industrial (Estado Social). Neste período se passou a exigir do Estado a consecução de obrigações de fazer destinadas a atender às necessidades básicas dos cidadãos, com o desiderato de lhes garantir os direitos constitucionalmente positivados, tais como, o direito à saúde, educação, alimentação, moradia, segurança pública. Noutras palavras, exigiu-se a partir a implementação de direitos prestacionais destinados à promoção da igualdade e da justiça social. Para Mendes (2015, p. 137):

O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais – como a de sindicalização e o direito de greve. Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos têm por titulares indivíduos singularizados.

A terceira dimensão trata dos direitos difusos e coletivos (supraindividuais) para proteção da coletividade. São direitos que transcendem a tutela do indivíduo, possuindo como alvo a tutela de direitos e interesse titularizados pela coletividade. Surgem a partir da expansão dos meios de comunicação, de transporte e interação social. São exemplos dos direitos e terceira geração, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, os direitos dos consumidores, os direitos da criança, adolescente, idosos, conservação do patrimônio histórico e cultural. Para Bonavides, os direitos de terceira geração dizem respeito aos direitos daqueles que passam a integrar a titularidade de grupos humanos, como a família, a sociedade e a coletividade:

Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo, ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (BONAVIDES, 2001, p. 523).

Tecidas as considerações acerca da classificação dimensional ou geracional dos direitos fundamentais, cumpre, antes de adentrar à análise dos direitos sociais, em especial, dos direitos dos trabalhadores, objeto do presente trabalho, destacar a necessidade em se diferenciar os conceitos de direitos fundamentais e direitos humanos, na medida em que é corriqueira a confusão quanto às nomenclaturas.

Sarlet (2009, p. 29) esclarece que apesar de serem utilizados, por vezes, como sinônimos, direitos fundamentais “são aqueles positivados, aplicáveis aos cidadãos de determinado Estado, reconhecidos e protegidos por este”. Os direitos humanos guardam relação com o ser humano no âmbito internacional, independente da vinculação do cidadão com determinado Estado ou ordem constitucional, revelando seu caráter supranacional.4

3 OS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais são enquadrados como direitos de segunda geração que foram conquistados ao passo que a sociedade começou a demandar e exigir prestações positivas do Estado, mediante a adoção de ações estatais e elaboração de políticas públicas voltadas para a garantia de melhores condições de vida e promoção da justiça social. São direitos à prestação estatal e ao reconhecimento de uma liberdade real e igual para todos” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 137), alcançadas a partir da garantia das condições materiais mínimas e essenciais a uma vida digna, não adstrita a mera igualdade perante a lei.

Sarmento, ao dissertar sobre o processo de positivação dos direitos sociais e econômicos, mediante sua incorporação nos textos constitucionais, destaca a importância da democratização política para o processo de ampliação dos direitos fundamentais:

A democratização política rompera a hegemonia absoluta da burguesia no Parlamento, abrindo caminho, no plano político, para a afirmação das necessidades dos extratos mais desfavorecidos da população. Surge então, na virada para o século XX, o Estado de Bem Estar Social, e com ele a consagração constitucional de uma nova constelação de direitos, que demandam prestações estatais destinadas à garantia de condições mínimas de vida para a população (direito à saúde, à previdências, à educação, etc.) Estes novos direitos penetram nas constituições a partir da Carta mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919 (SARMENTO, 2010, p. 18).

Com as lutas operárias, houve a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, principalmente em decorrência da positivação de normas de proteção ao trabalho, com a constitucionalização dos direitos sociais do trabalhador. Sarlet (2002, p. 94-95) afirma que os “direitos sociais, tanto os prestacionais, quando os direitos de defesa, constituem exigência para a concretização da dignidade da pessoa humana e que os direitos de cunho prestacional estão a serviço da liberdade e da igualdade”, objetivando a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência digna.

Sarlet (2002, p. 95), ao tratar das conquistas dos direitos sociais relativos à dignidade da pessoa humana no trabalho, destaca que:

O reconhecimento jurídico-constitucional da liberdade de greve e de associação e organização sindical, jornada de trabalho razoável, direito ao repouso, bem como as proibições de discriminação nas relações trabalhistas foi o resultado das reinvindicações das classes trabalhadoras, em virtude do alto grau de opressão e degradação que caracterizava, de modo geral, as relações entre capital e trabalho, não raras vezes, resultando em condições de vida e de trabalho manifestamente indignas, situação que, de resto, ainda hoje não foi superada em expressiva parte dos Estados que integram a comunidade internacional.

Silva (2002, p. 174-175), ao prelecionar sobre a inspiração e fundamentação dos direitos fundamentais, destaca a origem dos direitos sociais como sendo direitos de segunda geração, nos seguintes termos:

Todos esses fundamentos foram sendo superados pelo processo histórico-dialético das condições econômicas, que deram nascimento a novas relações objetivas com o desenvolvimento industrial e o aparecimento de um proletariado amplo sujeito ao domínio da burguesia capitalista. Essas novas condições materiais da sociedade teriam que fundamentar a sua origem de outros direitos fundamentais – os direitos econômicos e sociais – e concomitantemente a transformação do conteúdo dos que serviam à burguesia em sua luta contra o absolutismo. Daí também sobreviriam novas doutrinas sociais, postulando a transformação da sociedade no sentido da realização ampla e concreta desses direitos.

Bonavides (2001, p. 343) destaca a importância funcional dos direitos sociais, qual seja, “realizar a igualdade na sociedade; ‘igualdade niveladora’, volvida para situações humanas concretas, operada na esfera fática propriamente dita e não em regiões abstratas ou formais de Direito.” De acordo com Moraes:

Os direitos fundamentais sociais são caracterizados como liberdades positivas, direitos prestacionais que devem ser obrigatoriamente assegurados pelo Estado para a concretização da igualdade social e a melhoria das condições de vida aos hipossuficiente, em especial, os trabalhadores (MORAES, 2006, p. 180).

Analisando a natureza jurídica e as características dos direitos dos trabalhadores, Moraes, é expresso ao consignar a sua fundamentalidade, ao assim prelecionar:

Os direitos dos trabalhadores, enquanto direitos fundamentais sociais, são normas cogentes, de ordem pública, cujas principais características são a efetividade, a inviolabilidade e a imperatividade no ato de manifestação de vontade das partes contraentes de uma relação de trabalho (MORAES, 2006, p. 181).

Silva (2002, p. 285) define os direitos sociais como sendo:

Dimensão dos direitos fundamentais do homem são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilita melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.

Ressalta-se que a Constituição da República (1988), em capítulo próprio, intitulado dos “Direitos Sociais”, elencou amplo catálogo de direitos sociais no seu artigo 6º e previu, de maneira exemplificativa, em seu artigo 7º, extenso rol de direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 também consagra em seu artigo XXII, que:

Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. (BRASIL, 1988).

O extenso rol dos direitos sociais elencados na Constituição da República ressalta a importância que esses direitos possuem para a consolidação de uma democracia social efetiva, demonstrando “a inegável relação entre direitos sociais e Estado Social de Direito” (MENDES, 2015). Silva (2002, p. 463) ainda ressalta que esses direitos sociais dos trabalhadores “constituem ramo autônomo do direito, destinado a disciplinar e regulamentar as relações de trabalho, com o desiderato de tutelar os interesses dos trabalhadores”, mediante a proteção jurisdicional dessa categoria de hipossuficientes.

Os direitos do trabalhador, enquanto direitos sociais, contribuem para a democratização de poder na economia nas sociedades capitalistas, emancipação e inclusão socioeconômica, ao propiciar o alargamento do mercado, com melhor distribuição de renda e ampliação do poder aquisitivo dos indivíduos integrantes de uma sociedade. Os direitos sociais, mais especificamente os direitos sociais dos trabalhadores, são frutos de conquistas históricas, decorrentes das lutas do proletariado, que foram formalmente constitucionalizados, desencadeando a promoção de uma liberdade concreta e efetiva em uma sociedade desigual.

4 AS TRANSFORMAÇÕES E A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO

Conforme ensinamentos de Bolzan de Morais (2011, p. 18), a instituição Estado se viu envolta de um “largo processo de consolidação e transformações no decorrer de toda a história”. Atualmente, para alguns, a forma Estado passa por uma desconstrução e, para outros, por uma necessária refundação, diante das várias crises a que se vê submetido. A instituição jurídico-política Estado passou por diversas mudanças em seu adjetivo, sendo que a forma “Estado” permaneceu durante essas transformações. Essas mutações foram ocorrendo na medida das gerações/dimensões que os direitos fundamentais foram sendo positivados.

Sarmento (2010, p. 04) aduz que a trajetória histórica dos direitos fundamentais pode ser dividida em duas fases, sendo o “Estado Liberal e o Estado Social, além de um modelo em construção, o denominado Estado Pós-Social”. Afirma ainda que não há uma completa ruptura entre esses modelos, mas evoluções gradualistas. Assim, quando da primeira geração de direitos fundamentais, isto é, da positivação dos primeiros direitos, primou-se pela abstenção dos governantes, sendo criadas as chamadas obrigações de não fazer, “limitando as intervenções estatais nos aspectos individuais da vida de cada pessoa” (MENDES, 2015, p. 137).

Mendes (2015, p. 137) destaca que diante desse cenário em que o paradigma do titular desses direitos é o homem individualmente considerado, com sua autonomia, “o Estado passou a se abster de intervir, prevalecendo as liberdades individuais da classe dominante, qual seja, a burguesia”. Nesse sentido, destaca-se o momento do denominado Estado de Direito Liberal ou Estado Mínimo. Este Estado de Direito Liberal, conforme ensinamentos de Leite (2014, p. 37), se caracterizava pela “total subordinação ao direito positivo editado pela burguesia, ou seja, pela classe dominante, sendo que servia de limitador da ação estatal”. Era nutrido, ainda, pela igualdade formal, gerando riqueza para poucos e miséria, pobreza para muitos.

Coadunando com esse entendimento, Sarmento (2010, p. 8) descreve que:

Por muito tempo, estes direitos não eram nada mais do que deveres de abstenção do Estado, que deveria manter-se inerte para não violá-los. O essencial era salvaguardar as liberdades privadas do indivíduo, o que impunha o estabelecimento de limites ao exercício do poder político. O Estado era visto como um adversário da liberdade, e por isso cumpria limitá-lo, em prol da garantia dos direitos do homem. Sob este prisma, foi de enorme utilidade a técnica da separação de poderes, divulgada por Montesquieu, que tinha como finalidade conter o poder estatal para assegurar o governo moderado. Esta era a engenharia institucional do Estado Liberal, que tinha como telos a liberdade individual.

Posteriormente, com a insuficiência para a garantia da dignidade humana pelo Estado Liberal, com as revoluções perpetradas pela classe do proletariado e suas reivindicações por melhores condições de vida e de trabalho, despontou-se a necessidade da participação positiva da figura estatal, com o fim de garantir a realização da justiça social, mediante a adoção de ações estatais e elaboração de políticas públicas de implementação dos direitos sociais. “A ideia liberal passou a não responder satisfatoriamente as exigências do momento” (MENDES, 2015, p. 137). Conforme assevera Perez Luño (2007, p. 38, tradução nossa)5:

Ao longo do século XIX o proletariado vai adquirindo protagonismo histórico, à medida que avança o processo de industrialização, e quando desenvolve uma consciência de classe reivindica alguns direitos econômicos e sociais frente aos clássicos direitos individuais, fruto do triunfo da revolução liberal burguesa. A partir de então o direito ao trabalho, aos seus frutos e a seguridade social passam a ser as novas exigências, cuja proteção jurídica se reclama. Sob este aspecto se pode considerar como a carta destes novos direitos o Manifesto Comunista, redigido por Marx e Engels no ano de 1848.

Sarmento (2010, p. 17) destaca quanto a esta fase que: “com o passar do tempo, foi se consolidando a convicção de que, até para o efetivo desfrute dos direitos individuais, era necessário garantir condições mínimas de existência para cada ser humano”.

Diante disso, surgiu a segunda geração dos direitos fundamentais, da qual se exigiu do Estado prestações positivas, dando ênfase ao princípio da igualdade substancial, atendendo-se os direitos à prestação e reconhecimento das liberdades sociais. Diante desse cenário, destacou-se o Estado de Direito Social ou Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). Assim, Sarmento (2010, p.18) explicita que:

Surge então, na virada para o século XX, o Estado do Bem-Estar Social, e com ele a consagração, constitucional de uma nova constelação de direitos, que demandam prestações estatais destinadas à garantia de condições mínimas de vida para a população (direito à saúde, à previdência, à educação etc.).

E ainda acrescenta:

Assim, o Poder Público distancia-se de sua posição anterior, caracterizada pelo absenteísmo na esfera econômica, e passa a assumir um papel mais ativo, convertendo-se, mesmo no regime capitalista, no grande protagonista da cena econômica. O Estado Liberal transformara-se no Estado Social, preocupando-se agora não apenas com a liberdade, mas também com o bem-estar do seu cidadão. Assiste-se, neste contexto, a um crescente intervencionismo estatal em prol das partes mais fracas das relações sociais. O Direito do Trabalho desmembra-se do Direito Civil, afirmando-se como um novo ramo da ordem jurídica, fundado sobre premissas inteiramente diversas, com o objetivo de proteção do trabalhador diante do seu empregador, como parte mais fraca da relação jurídica (SARMENTO, 2010, p. 19).

Bolzan (2011, p. 41) demonstra exatamente esta evolução do Estado, passando-se, assim, do Estado do Bem-Estar Social ao Estado Democrático de Direito, no sentido de que, “dado o seu viés mutante, o Estado do Bem-Estar Social não se constitui definitivamente, de uma vez por todas, mantendo apenas a ideia do atingimento da função social”. Com a globalização econômica, o Estado Social foi perdendo o seu domínio sobre as variáveis que influenciavam a economia, havendo sua perda de capacidade para formular e introduzir políticas públicas, comprometendo a garantia dos direitos sociais (LEITE, 2014).

A partir da crise do Estado Social, surge o Estado Democrático de Direito que emerge como um aprofundamento/transformação da fórmula, de um lado, do Estado de Direito e, de outro, do Estado Social. Leite, citando Bobbio, aduz que o Estado Democrático de Direito tem como diretriz “não só justificar os direitos sociais como direitos humanos e fundamentais, como também garanti-los” (LEITE, 2014, p. 41).

Há que se constar que com todas essas gerações dos direitos fundamentais, além de todas as transformações que a instituição Estado passou em sua adjetivação, isso não significa que uma geração foi melhor que a outra demonstrando uma evolução de maneira progressiva. Cada etapa foi surgindo, mas não foram desfeitas as conquistas anteriores das demais; não são etapas estanques. Assim, foram sendo cumuladas as características de umas com as outras, não significando que houve evolução ou retrocesso nestas transformações. Mendes (2015, p. 138) descreve muito bem a situação acima exposta quando expõe que:

A visão dos direitos fundamentais em termos de gerações indica o caráter cumulativo da evolução desses direitos no tempo. Não se deve deixar de situar todos os direitos num contexto de unidade e indivisibilidade. Cada direito de cada geração interage com os das outras e, nesse processo, dá-se à compreensão.

Diante de todo o exposto, após o enfoque nas transformações da instituição Estado, em suas diversas adjetivações, iniciando-se como Liberal, vindo a se tornar Social, bem como Pós-Social, com as mudanças das necessidades da sociedade como um todo, necessário se faz a exposição, a seguir, sobre a crise do Estado Social de Direito.

4.1 Crise do Estado Social de Direito

Para Pietro (2008), o Estado Social de Direito “tenta conjugar legalidade com justiça social, não sendo suficiente a abstenção estatal, mas ações próprias que assegurem o efetivo exercício da liberdade”. Na esfera trabalhista, há um compromisso entre o capital e o trabalho, favorecendo o pleno emprego, as condições de trabalho e o poder negocial dos trabalhadores. Bonavides retrata a passagem do Estado Liberal para o Estado Social com a descrição a seguir:

[...] quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional, ou fora deste, os direitos do trabalho da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social (BONAVIDES, 2001, p. 183-186).

A crise do Estado Social de Direito se acentuou sob o impacto da globalização econômica, momento de interdependência entre os Estados e de pluralismo normativo. Para Julios-Campuzano (2009, p. 62) “com a globalização se multiplicam as instâncias produtoras de direito e as fontes de normatividade, se deslocam os centros de decisão e a efetividade da Constituição é colocada em dúvida, pois a soberania do Estado foi desgastada”, bem como a capacidade reguladora do texto constitucional e de seu ordenamento.

Esta dinâmica da globalização enfraqueceu a capacidade de muitos Estados para cumprir suas obrigações, especialmente para implementar os direitos econômicos e sociais. Assim, a perda do protagonismo da Constituição na ordem social e sua incapacidade para submeter os processos socioeconômicos à força normativa de seus postulados, agrava a crise do direito regulador e do Estado Social “que se vê compelido a submeter-se aos ditados da economia transnacional e às exigências da nova ordem global” (CAMPUZANO, 2009, p. 99).

Pietro (2008) expõe que a crise do Estado Social decorreu de um misto de situações, sendo os custos sociais sempre maiores, a dificuldade em se controlar a qualidade no fornecimento dos serviços, a proliferação de conflitos, a confusão de poder político e econômico, e a difusão de egoísmos e particularismos. Coadunando com esse entendimento, Sarmento destaca que:

O Estado, que havia se expandido de modo desordenado, tornando-se burocrático e obeso, encontrava enormes dificuldades, para se desincumbir das tarefas gigantescas que assumira. A explosão das demandas reprimidas, gerada pela democratização política, tornada extremamente difícil a obtenção dos recursos financeiros necessários ao seu atendimento. Por outro lado, o envelhecimento populacional, decorrente dos avanços na medicina e no saneamento básico, engendrou uma perigosa crise de financiamento na saúde e na previdência social – pilares fundamentais sobre os quais se assenta o Estado Social (SARMENTO, 2010, p. 26).

E acrescenta:

Sob o impacto da globalização, o Estado se debilita, na medida em que vai perdendo o domínio sobre as variáveis que influem na sua economia. Deteriora-se a sua capacidade de formulação e implementação de políticas públicas, de regulamentação e fiscalização do seu mercado interno, e com isso o seu poder de garantir a eficácia dos direitos sociais (SARMENTO, 2010, p. 27).

A concretização dos direitos sociais no Brasil e em muitos países da América Latina passa por inúmeras dificuldades. Além de deficitária por diversos motivos, a implementação de direitos sociais se torna ineficiente, o que faz com que a população passe a acreditar que “somente por intermédio de ações judiciais e da atuação dos órgãos jurisdicionais é que será possível a concretização de direitos sociais” (MENDES, 2015, p. 694).

Diante dessa situação, o Estado brasileiro, apesar do compromisso com a promoção da justiça social e da igualdade material, passa por transformações ditadas pelo mercado globalizado, pela evolução das relações sociais e pelas mudanças nas formas de contratação do trabalho humano, em especial, com o desiderato de promover a modernização da legislação trabalhista, de modo a torná-la mais efetiva, menos formalista e burocrática, desde que as transformações não impliquem em redução da proteção dos trabalhadores (SARMENTO, 2010).

Sarmento (2010, p. 33) ao tratar desta flexibilização expõe que “as normas jurídicas que este Estado produz são muitas vezes negociadas em verdadeiras mesas-redondas, e o Direito se torna mais flexível, sobretudo para os que detêm o poder social”. Deste modo, em razão da crise, a situação de pleno emprego se vê comprometida, estando em ascensão a sua informalização, tornando-se, assim, necessária uma maior flexibilização das leis trabalhistas, sem afetar os direitos essenciais e garantidos constitucionalmente.

O que se depreende é que a crise do Estado Social, desencadeada principalmente pela conjuntura da globalização e pelas transformações nas relações sociais, podem afetar as garantias trabalhistas, uma vez que os empregadores procurarão cortar custos em busca da maximização dos lucros e de um maior crescimento econômico. Nesse contexto, os direitos trabalhistas não podem ser compreendidos como obstáculos para o desenvolvimento da economia e da competitividade de mercado.

Não se pode olvidar que a sociedade passou por transformações econômicas, bem como na esfera social, com mudanças no mundo do trabalho, sendo necessárias readequações normativas com o objetivo de garantir o emprego dentro de uma nova ótica capitalista, dentro de uma nova realidade social complexa, informatizada, tecnológica, garantindo os patamares mínimos de direitos sociais previstos constitucionalmente.

Vale destacar o posicionamento de Silva (2014), a qual aduz que deve haver um urgente ajustamento da atuação estatal para impedir a falência do sistema de prestações sociais, pois houve um inquestionável e generoso aumento dessas prestações, sem que se tenha pensado em formas e meios para se garantir a sua sustentabilidade, isto é, forma de obtenção dos recursos econômicos indispensáveis à sua consecução. Segundo destaca:

Não se trata apenas de discutir, no plano constitucional, a existência ou não de um princípio de proibição de retrocesso social ou de colocar sob condição de reserva do possível a satisfação prospectiva dos direitos sociais (algo que se tornou especialmente claro com os regimes jurídicos dos sistemas de pensões e os denominados “factores de sustentabilidade” dos quais passaram a depender a idade da reforma e o montante das prestações dos futuros pensionistas), trata-se de um esquema de equilíbrio e justiça na repartição de recursos, (re)desenhado sob a égide do princípio da justiça distributiva perante as oscilações entre ciclos de crescimento e ciclos de recessão económica (SILVA, 2014, p. 186, grifo do autor).

Portanto, diante desse contexto de transformações sociais, de modernização das relações trabalhistas, de flexibilização e de crise do Estado Social de Direito, passa-se a analisar o princípio constitucional da proibição ao retrocesso social com o desiderato delinear seu conteúdo e verificar em que medida este princípio é limitador às alterações legislativas recentemente produzidas, principalmente no que concerne às alterações legislativas relacionadas à tutela dos direitos trabalhistas.

5 PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é um marco na proteção dos direitos fundamentais, principalmente, quanto aos direitos de segunda e terceira geração, dentre os quais, estão os direitos sociais do trabalho. Tais direitos são condições de garantia de existência mínima e digna do ser humano, sendo tutelados por esse sistema constitucional de proteção.

Com o advento do pós-positivismo, os princípios constitucionais consolidaram sua carga obrigacional, em razão do reconhecimento de sua força normativa e imperatividade. Enquanto normas constitucionais, os princípios constitucionais devem ser respeitados como normas jurídicas com vinculação social. Coadunando com esse entendimento, Streck (2003, p. 53). destaca que:

Dito de outro modo, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade.

O texto constitucional consolidou um patamar mínimo de direitos fundamentais que devem ser respeitados e concretizados pelo legislador infraconstitucional, com o desiderato de promover a máxima efetividade dos direitos conquistados. Nessa perspectiva o princípio da proibição ao retrocesso social, implicitamente previsto no caput do artigo 7º, da Constituição da República de 1988, assume extrema relevância na ordem constitucional brasileira.

O princípio da proibição ao retrocesso social impõe que o Estado, após a constitucionalização de um direito fundamental, não poderá retroceder, isto é, praticar atos contrários à efetividade do direito e a sua fruição, “sem a correspondente adoção de outra medida efetiva substitutiva ou equivalente” (DERBLI, 2007, p. 223). Não pode, portanto, praticar atos tendentes a reduzir a eficácia do direito fundamental positivado.

Segundo ensinamentos de Sarlet (2007, p. 434-435),

[...] são bases do princípio da proibição do retrocesso à dignidade da pessoa humana, o Estado Democrático e Social de Direito, a máxima efetividade das normas constitucionais, a segurança jurídica, a proteção da confiança e da boa-fé.

Para Canotilho (2003, p. 339) o princípio da democracia social e econômica aponta para a proibição do retrocesso social e ainda descreve que:

Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises económicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Mendes (2015, p. 645) define o princípio da proibição do retrocesso como sendo “a impossibilidade de extinguir direitos sociais já implementados evitando-se o retrocesso ou limitação que atinja o seu núcleo essencial”. O Poder Legislativo não está obrigado a apenas concretizar os direitos sociais, mas, após criá-los, possui o dever de mantê-los, de preservar a sua máxima efetividade, haja vista sua vinculação às normas constitucionais. Quanto ao princípio da proibição do retrocesso, Mendes (2015, p. 645 ainda ressalva que:

Embora se possa entender que a proibição do retrocesso tem em vista assegurar a preservação dos direitos consolidados, especialmente aqueles direitos de caráter prestacional, não se pode olvidar que vicissitudes de índole variada podem afetar a capacidade do Estado de garantir tais direitos da forma inicialmente estabelecida.

Há referência ao princípio da proibição do retrocesso na jurisprudência da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida tendo como relator o Ministro Celso de Mello:

O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. (ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe 15-09-2011).6

Ao tratar da garantia dos direitos sociais pelo Estado e o princípio do não retrocesso, Silva, aduz que:

Não se trata de discutir novamente se ao analisar os direitos sociais estamos perante normas programáticas ou dotadas de eficácia jurídica plena. Sabemos hoje que são normas jurídicas que vinculam o Estado, mas sabemos também que o Estado não é um milagreiro e que a petrificação dos direitos sociais (princípio da proibição do retrocesso social) ou outras teorias aparentemente mais garantísticas dos direitos subjectivos dos indivíduos podem constituir um fenômeno de injustiça social ainda maior do que a revogação pura e simples de alguns direitos consagrados em lei, na medida em que alguém terá de suportar a despesa. Atendemos, por exemplo, nos resultados preocupantes do desempenho económico e financeiro dos Estados, que não conseguem sustentar as suas necessidades financeiras e recorrem ao endividamento externo, instituindo facturas pesadas para as novas gerações (SILVA, 2014, p. 195).

Ressalta-se que, assim como os demais princípios constitucionais, o princípio da vedação do retrocesso não se reveste de caráter absoluto, mas exige que as alterações que possam ser realizadas pelo legislador infraconstitucional não afetem diretamente o conteúdo mínimo, a essência dos direitos fundamentais, inclusive os direitos sociais, assegurados constitucionalmente, retirando ou reduzindo-lhes a efetividade.

Isso significa que não há que se falar em impedimento de adequação das normas trabalhistas às novas realidades que surgem com o desenvolvimento da sociedade nas suas relações laborais. O que se abomina, sob a perspectiva do princípio da vedação do retrocesso, é a adoção de medidas retrocessivas de direitos, sem a adoção de outra compensativa que melhore a posição do trabalhador de forma concreta e efetiva, devendo prevalecer a proteção e a busca pela justiça social.

O princípio da proibição do retrocesso atua como limite ao legislador, impedindo-lhe de adotar medidas destinadas a reduzir a efetividade dos direitos sociais positivados, ou seja, reconhecidos e sedimentados. O princípio se apresenta como valioso instrumento garantidor da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da estabilidade das próprias posições jurídicas, sendo, assim, barreira e limite às flexibilizações maléficas à legislação trabalhista, garantidora dos direitos protetores dos trabalhadores.

6 A REFORMA TRABALHISTA – LEI FEDERAL N.º 13.467 DE 2017

A Lei Federal n.º 13.467/2017, que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, bem como algumas leis especiais, teve por objetivo adequar estas legislações à nova realidade social, às novas relações de trabalho, às novas práticas na contratação do trabalho no mercado, principalmente pelo fato da Consolidação das Leis do Trabalho ser datada de 1943, ou seja, possuir mais de 74 anos de vigência.

Inquestionavelmente, neste período, a sociedade passou por diversas transformações de comportamento e nas relações interpessoais, mas a legislação trabalhista não acompanhou tais mudanças na realidade brasileira. A nova realidade social, mais dinâmica, tecnológica e informal, tornou obsoletas e incompatíveis inúmeras normas jurídicas e institutos jurídicos contidos na legislação trabalhista vigente, de inspirada pela legislação italiana.

É importante frisar que os direitos fundamentais, dentre eles os direitos sociais, não são imutáveis, devendo acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade em razão de sua evolução. As alterações promovidas na tutela dos direitos trabalhistas, para amoldá-los à evolução dos comportamentos sociais, devem se destinar a promover acréscimos, ampliar a sua efetividade, sem se falar em redução ou, até mesmo, extinção de direitos e garantias.

O Estado Social, surgindo em meados do século passado e ainda presente em quase todas as formas de organização estatal, tem como sua principal característica, a função reguladora da economia-social de mercado. Esse Estado tem como objetivo cuidar e atender os interesses dos cidadãos, “apesar de suas características interventivas terem se alterado substancialmente com a mudança do paradigma econômico” (SILVA, 2014, p. 204).

Com a globalização, a atuação do Estado se voltou para o crescimento da economia e para o fortalecimento do mercado. Com essa mudança de perspectiva, surgiram movimentos para a flexibilização dos direitos trabalhistas, encarados como impasse ao desenvolvimento econômico. O enfoque adotado é a garantia do arranjo econômico como justificativa para o corte de gastos públicos, principalmente, de gastos sociais, enfraquecendo os institutos constitucionais.

Sarlet (2007, p. 2), ao tratar da crise do Estado Social de Direito e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social, descreve que:

[...] se, por um lado, a necessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser desconsiderada, simultaneamente o clamor elementar da humanidade por segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas do Estado.

Nesse contexto, a legislação trabalhista passou por diversas mudanças, sendo parte delas encaradas por alguns segmentos da sociedade como redução/fragilização de direitos trabalhistas protegidos constitucionalmente, diminuindo o valor do trabalho na economia e na sociedade brasileiras. Para alguns segmentos sociais, a Lei Federal que trata da reforma não teria introduzido quase nenhum preceito favorável ao trabalhador, além de ter apresentado várias regras desfavoráveis, com objetivos antissociais e anti-humanistas.

Assim, proceder-se-á a análise acerca das alterações legislativas introduzidas pela Lei Federal n.º 13.467/17, no tocante a alguns dos principais direitos do trabalhador, sob as luzes do princípio constitucional da vedação ao retrocesso social, de modo a identificar em que medida as alterações promovidas poderão contribuir para evolução ou involução das relações de trabalho, sempre em busca da efetiva tutela e proteção dos direitos fundamentais do trabalhador insculpidos na Constituição da República.

7 ANÁLISE ACERCA DAS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI FEDERAL N.º 13.467 DE 2017

Dentre as mudanças inseridas na legislação trabalhista está a previsão da prevalência do negociado sobre o legislado, valorizando e dando força de lei às negociações coletivas entre empresas e sindicatos, mesmo que não destinadas à ampliação de direitos. Essa valorização do negociado sobre o legislado pode ser considerada positiva sob a perspectiva de se permitir ao trabalhador a flexibilização da forma de usufruição de seus direitos, valorizando e enaltecendo sua autonomia e liberdade contratual, ao permitir que escolha a melhor forma de exercer seus direitos constitucionais.

Há que se ter, todavia cautela e parcimônia, uma vez que, algumas das alterações introduzidas pela Lei Federal n.º 13.467/17, se mal utilizadas, podem caracterizar verdadeiro retrocesso social e afronta à Constituição da República, com o enfraquecimento da classe trabalhadora. Daí a importância das discussões em torno das alterações legislativas, da atuação dos órgãos de controle e fiscalização, bem como a intervenção judicial, nos casos em que se verificar lesão aos direitos do trabalhador, de modo a assegurar a efetividade dos direitos fundamentais do trabalhador.

Nesse diapasão, objetivando contribuir para o debate e para a efetividade dos direitos fundamentais do trabalhador, passa-se à análise crítica de algumas das principais alterações introduzidas na legislação trabalhista.

Extinção contratual por acordo entre empregado e empregador, com restrição das verbas rescisórias. Conforme preceitos legais contidos no artigo 484-A, da Consolidação das Leis Trabalhistas, preceituou-se a possibilidade de que o contrato de trabalho seja extinto por mútuo acordo entre empregados e empregadores. Nessa hipótese, será devido aos empregados, metade do aviso prévio integral ou proporcional, se indenizado; metade da multa incidente sobre o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (20%); bem como a movimentação/saque de até 80% do saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

A alteração promovida, fomentando a negociação entre os contratantes, tem por objetivo flexibilizar/facilitar a extinção do contrato de trabalho em razão de negociação entre empregado e empregador, para atender aos seus interesses das partes. Se por um lado permite ao trabalhador movimentar em até 80% do saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o que pode ser considerado um avanço, por outro lado, reduz pela metade o valor do aviso prévio, integral ou proporcional, a multa incidente sobre o saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, e elimina o direito ao recebimento do seguro desemprego.

Outra alteração promovida foi a inserção da modalidade de Contrato de Trabalho Intermitente, conforme preceitos contidos no artigo 443, §3º, da Consolidação das Leis do Trabalho. Nessa modalidade contratual, o trabalho pode ser prestado em intervalos de atividade e inatividade, podendo ser em horas, dias ou meses. A referida alteração pode ser interpretada, de certa forma, como prejudicial ao trabalhador, ao retirar a certeza do salário no final do mês, fortalecendo a classe empregadora. Por outro lado, não se pode olvidar que essa nova modalidade de contratação de trabalho pode facilitar e estimular a contratação de trabalhadores, para atender demandas específicas e pontuais dos contratantes, contribuindo para a formalização de relações de trabalho.

O empregador pode convocar o empregado, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência, o qual, terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa. A principal crítica ao contrato de trabalho intermitente está no fato de que essa modalidade de contratação flexibilizaria dois conceitos justrabalhistas elementares, quais sejam, a noção de duração de trabalho e de salário. A Lei Federal n.º 13.467/17, em que pese estabelecer a possibilidade de que o empregado fique à disposição do empregador, não atribui efeitos jurídicos ao tempo à disposição, pelo qual o empregado não será remunerado.

Quanto ao salário, este será pago ocasionalmente, se e quando o trabalhador for convocado para o trabalho, uma vez que ele terá o seu pagamento na estrita medida desse trabalho ocasional, com observância da garantia do salário mínimo vigente, sendo que não pode receber menos que o mínimo legal. Dessa maneira, ao final do expediente, receberá remuneração, férias proporcionais com acréscimo de 1/3, 13º salário proporcional, repouso semanal remunerado, adicionais legais, sem prejuízo à obrigação do empregador recolher as contribuições previdenciárias e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

Ponto controvertido diz respeito ao pagamento das férias no Contrato de Trabalho Intermitente. Nos termos do parágrafo nono, do artigo 452-A, da Consolidação das Leis do Trabalho, a cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador. Assim, pela literalidade da lei, há a possibilidade de que as férias sejam gozadas sem que o empregado tenha reservado os valores a ela correspondentes e seu acréscimo de um terço, relativos a cada contratação, o que pode comprometer os objetivos e finalidades almejadas com a concessão das férias.

Ademais, outro grande risco nessa modalidade de contrato está no fato do empregado passar o dia à disposição do empregador, sem ter seu trabalho utilizado, somente recebendo pelas horas trabalhadas, tornando possível que, ao final do mês, perceba valores inferiores a um salário mínimo, bem como, a depender da forma e da intensidade que esse “estar à disposição” se concretizar, não lhe ser materialmente possível prestar serviços a outras pessoas, nem realizar outras atividades remuneradas, desvirtuando a lógica e a finalidade dessa modalidade de contratação, que se traduzirá em benefícios apenas aos empregadores.

Jornada de Trabalho 12 x 36. Essa modalidade de contratação já constituía prática comum e reiterada nas relações de trabalho, em especial em trabalhos como os de porteiros, seguranças, enfermeiros, sendo reconhecida, inclusive, pela jurisprudência, tendo o Superior Tribunal do Trabalho editado a Súmula n.º 444, para discipliná-la. Conforme preceitos legais contidos nos artigos 59-A e 60, da Consolidação das Leis Trabalhistas, o contrato de trabalho com jornada de 12 horas de trabalho, por 36 horas de descanso, pode ser fixado por simples acordo bilateral escrito entre as partes sem a necessidade de observância do intervalo intrajornada para repouso e alimentação, mediante sua indenização em pecúnia.

Note-se, que objetivando a preservação da saúde do trabalhador submetido à jornada de trabalho de 12 x 36, bem como a tutela da segurança no ambiente de trabalho, a legislação não deveria permitir a possibilidade de indenização em pecúnia do intervalo intrajornada, suprimindo esse período de descanso do trabalhador. A mudança introduzida na legislação trabalhista, em descompasso com a Súmula 437, do Superior Tribunal do Trabalho e com inúmeros precedentes jurisdicionais, coloca em risco a saúde do trabalhador ao permitir a negociação do intervalo intrajornada, com sua conversão em pecúnia, caracterizando verdadeiro retrocesso na proteção do trabalhador.

O artigo 59-A, da Consolidação das Leis do Trabalho, além de legalizar a adoção do regime de jornada de trabalho de 12 x 36, previu a possibilidade de que sua adoção seja realizada por meio de acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho. Destaque-se, que em sua redação original, a Lei Federal n.º 13.467/2017, estabelecia a possibilidade de adoção do regime de jornada de trabalho de 12 x 36 também por meio de acordo individual, hipótese excluída em razão da edição da Medida Provisória n.º 808/2017, exceto para a área da saúde. Em razão da não conversão da Medida Provisória n.º 808/2017 em lei, passou a ser possível, novamente, a adoção do regime de jornada de trabalho de 12 x 36 por meio de acordo individual, o que pode representar um risco às relações de trabalho e á à proteção do trabalhador.

Outra mudança diz respeito ao pagamento de ajuda de custo, prêmios e diárias de viagem. Conforme preceitos legais contidos no parágrafo segundo, do artigo 457, da Consolidação das Leis do Trabalho, com as alterações introduzidas pela Lei Federal 13.467/17, as importâncias pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, diárias para viagem, prêmios e abonos, ainda que habituais, não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.

A mudança enfraquece a relevância do salário no contrato de trabalho, reduzindo os custos trabalhistas para os empregadores, bem como o custo previdenciário. Se por um lado podem representar um estimulo à contratação, em razão da redução dos encargos sociais, as alterações introduzidas pela Lei Federal 13.467/17 solapam o sistema brasileiro de seguridade social, não só por rebaixar gravemente o valor do trabalho na economia e na sociedade, mas também por comprometer a base salarial das contribuições previdenciárias. A mudança, além de refletir no ganho do trabalhador, altera a arrecadação dos encargos sociais, reduzindo, assim, o valor a ser recebido pelo trabalhador após sua aposentadoria ou no saque do seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

Diante das alterações introduzidas pela Lei Federal n.º 13.467/17, no que tange ao pagamento dessas verbas, competirá aos órgãos de fiscalização e aos órgãos jurisdicionais especial atenção aos casos concretos em que ficarem evidenciadas simulações ou fraudes no pagamento de salário mediante o pagamento de ajuda de custo, auxílio-alimentação, diárias para viagem, prêmios e abonos. Em que pese a previsão legal vigente, constatada a simulação ou fraude no pagamento do salário, deverá ser reconhecida às verbas natureza salarial. Observe-se, por oportuno, que a reforma trabalhista, ainda explicita que para que os valores pagos a título de prêmio não integrem o salário dos colaboradores, as condições estabelecidas devem incentivar o desempenho extraordinário do empregado, ou seja, que seu desempenho exceda o regular, superior ao ordinariamente esperado no exercício de suas atividades.

Outra mudança que merece ressalva é aquela referente à possibilidade da empregada grávida trabalhar em locais insalubres. O artigo 394-A, da Consolidação das Leis do Trabalho preceitua de forma inequívoca que a grávida deve ser afastada de atividade insalubre, quando grau máximo de insalubridade. Em atividades insalubres durante a lactação, ou em caso de grau médio ou mínimo, o trabalho seria permitido mediante apresentação de atestado médico, conforme mudanças introduzidas pelo advento da Medida Provisória n.º 8080/17. Assim, a grávida ou lactante poderiam apresentar atestado médico com o objetivo de continuar trabalhando em local insalubre para continuar recebendo o adicional, colocando em risco a vida e a saúde da mulher grávida e do nascituro.

A questão se tornou ainda mais controvertida em razão da não conversão da Medida Provisória n.º 808/217 em lei, principalmente se não houver nenhuma regulação decorrente da dessa não conversão, haja vista que a exigência de apresentação de atestado médico, nos casos de atividades insalubres de grau médio ou mínimo, não consta da redação originária do artigo 394-A, da Lei Federal n.º 13.467/17, mas tão somente da Medida Provisória que perdeu sua eficácia. Assim, caso não regulamentada essa questão, torna-se possível à gestante ou lactante trabalhar em ambientes de grau de insalubridade mínimo ou médio, independentemente da apresentação de atestado, recebendo pelo risco o adicional de insalubridade.

Seguindo a tônica da prevalência do negociado sobre o legislado, do fortalecimento da liberdade contratual e da autonomia do empregado, em especial, daqueles que possuem grau de formação superior, o artigo 444, da Consolidação das Leis do Trabalho, permite que empregadores façam acordos individuais com trabalhadores que tenham ensino superior e que ganhem valor igual ou superior a duas vezes o teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, qual seja, a quantia de R$ 11.062,62. Por sua vez, o artigo 507-A, da Consolidação das Leis do Trabalho, permite a estipulação de cláusula compromissória de arbitragem, para solução de conflitos oriundos da relação de emprego de empregado, cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, desde que por iniciativa do empregado ou sua expressa concordância.

Essas alterações se apresentam polêmicas e controvertidas, devendo ser analisadas com parcimônia, haja vista que a Constituição da República não autoriza a flexibilização de direitos por meio de acordos individuais. De fato, o reconhecimento de maior liberdade e autonomia na negociação trabalhista para empregados classificados como hiperssuficientes representa uma evolução em matéria trabalhista. Todavia, não se pode olvidar que portar diploma universitário, diante da questionável qualidade do ensino superior no Brasil, nem sempre afastará a hipossuficiência do portador de diploma na negociação de condições contratuais, o que poderá representar um risco a tutela de seus direitos trabalhistas.

Por esse motivo, competirá aos órgãos jurisdicionais avaliar, diante do caso concreto, se eventuais cláusulas contratuais ou renúncias efetuadas pelo empregado decorreram de seu livre e expresso consentimento, afastando decisões maculadas por vícios capazes de subtrair a autenticidade da vontade contratual. Ademais, cumpre salientar que determinadas condições, a título de exemplo, a redução salarial, continuam sob a égide da negociação coletiva, haja vista que a Constituição da República regulamenta esta circunstância específica, exigindo para essa matéria a obrigatoriedade de acordo ou convenção coletiva.

Além das alterações no que tange ao direto material do trabalho, cumpre salientar as alterações que recaíram sobre aspectos do processo do trabalho e da tutela jurisdicional dos direitos do trabalhador. Nesse sentido, os artigos 793-A ao 793-D, da Consolidação das Leis do Trabalho, disciplinam o instituto da litigância de má-fé, no processo do trabalho, ao estabelecerem a responsabilidade por dano processual, com apenação do litigante, da testemunha ou de terceiro interveniente que atentarem contra a lealdade e boa-fé processuais, por terem adotado quaisquer das condutas descritas no artigo 793-B, da Consolidação das Leis do Trabalho.

As alterações têm por desiderato reduzir pretensões infundadas, falsidades, lides temerárias ou outras condutas indesejáveis à efetividade do processo do trabalho e da tutela dos direitos do trabalhador, adotando rigor superior ao do Código de Processo Civil. A interpretação e a aplicação das penalidades previstas, todavia, devem ocorrer de forma excepcional e parcimoniosa, desde que presentes os seus pressupostos legais, sob pena de constituir uma forma indireta de restrição ao acesso à justiça na tutela dos direitos do trabalhador, parte hipossuficiente da relação jurídica, nem sempre dotado de conhecimentos técnicos para a defesa de seus interesses.

Nota-se, portanto, que a reforma trabalhista flexibiliza o exercício de alguns direitos assegurados pela legislação infraconstitucional, protegidos pelo princípio da vedação do retrocesso social, implicitamente contido na Constituição da República, que veda a supressão ou a redução de direitos sociais já efetivados. O que não se pode admitir são as interpretações da legislação ou práticas trabalhistas que vão de encontro ao progresso social do trabalhador, uma vez que os direitos sociais estão sujeitos ao princípio da proibição do retrocesso, importante instrumento de garantia social da valorização do trabalho, bem como para a tutela da dignidade da pessoa humana.

Assim, o Estado, baseado em critérios econômicos e políticos, não pode suprimir ou reduzir direitos sociais que foram conquistados ao longo dos anos e que possuem a finalidade de concretizarem os direitos fundamentais. Tanto os órgãos de fiscalização e controle, quanto os órgãos jurisdicionais devem estar atentos aos abusos ou à interpretação lesiva da legislação trabalhista, não tolerando práticas atentatórias aos direitos fundamentais do trabalhador. A esse respeito, vale frisar a citação de Souto Maior que alerta para o fato de que a flexibilização do direito do trabalho não é garantia de geração de empregos, mas sim, pode representar um impulso para o aumento da informalidade e do subemprego, conforme preleciona a seguir:

Menos direitos trabalhistas não significam mais emprego, por uma razão muito simples: o sucesso econômico não implica desenvolvimento social, pois a tendência, em longa escala (talvez nem tão longa assim), é a de que os trabalhadores que ocupam os empregos precários que se criam são os mesmos que antes ocupavam os empregados efetivos. Pode-se dizer que pelo menos não passaram a ser desempregados, mas esse argumento do mal menor despreza a dignidade humana (MAIOR, 2000, p. 29-30).

Acrescenta ainda que:

Ainda que se encontre algo que a legislação trabalhista brasileira precise de atualização – pois todo direito deve evoluir -, nada justifica que se altere o enfoque do problema. O direito do trabalho brasileiro, no geral, não é, como visto acima, rígido e antiquado. Por isso, a discussão está desviando-se do problema central. A questão crucial, que se opõe à efetividade dos direitos trabalhistas, é o desemprego, mas este não pode ser, em hipótese alguma, creditado ao direito do trabalho (MAIOR, 2000, p. 164).

Isso não quer dizer que a Constituição da República e as normas infraconstitucionais são imutáveis, mas “caso sejam modificadas, há que se ter maior benefício à sociedade em decorrência da obrigação de avanço social, não ignorando os direitos sociais adquiridos” (DERBLI, 2007, p. 202). Derbli (2007, p. 223) ainda acrescenta que

[...] alcançado determinado patamar de concretização de uma norma constitucional definidora de direito social, através de lei, será defeso ao legislador suprimir ou reduzir essa concretização, sem que, ao menos, crie algum mecanismo equivalente ou substituto.

Assim, a lei da reforma trabalhista, que entrou em vigor em novembro de 2017, deverá ser interpretada em conformidade com o texto constitucional, sob pena de ser declarada inconstitucional, pois os direitos conquistados, reconhecidos no ordenamento, são impassíveis de supressão pelo Estado. Portanto, o núcleo de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de 1988, dentre estes os direitos sociais do trabalho, é intangível face às flexibilizações que reduzam ou extingam os seus efeitos sem que se substitua por algo equivalente.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que com a globalização e a necessidade de progresso da sociedade, há uma incompatibilidade entre as medidas de ampliação econômica e o equilíbrio social de garantia das políticas públicas e direitos sociais. Os direitos sociais levaram considerável período da história para serem conquistados e positivados na legislação brasileira, não podendo ser reduzidos ou excluídos do ordenamento em prol de um suposto crescimento econômico, havendo que se respeitar o princípio da proibição do retrocesso, que atua como limite e mecanismo de proteção aos direitos sociais.

Assim, é vedado o desequilíbrio da ordem jurídica em prol de um progresso econômico desenfreado. Nesse sentido, qualquer ato normativo ofensivo ao ordenamento constitucional que promove os direitos dos trabalhadores não deve ser sustentado ou admitido, de forma a garantir conquistas para a satisfação dos interesses econômicos de uma minoria privilegiada. Deve-se repreender com rigor qualquer atitude ou interpretação que cause prejuízo social aos trabalhadores, sendo que a lei da reforma trabalhista deverá ser interpretada e aplicada de modo a não trazer retrocessos à classe trabalhadora.

O Estado, em razão da globalização e baseado em critérios econômicos e políticos, não pode suprimir ou reduzir direitos sociais que foram conquistados ao longo dos anos e que possuem a finalidade de concretizarem os direitos fundamentais, quais sejam, os direitos sociais trabalhistas. O princípio da proibição do retrocesso está intimamente relacionado com a proteção do trabalhador, alcançando-se a igualdade real entre as partes em uma relação de trabalho. Sob o aspecto deste princípio, não há que se falar em imutabilidade dos preceitos justrabalhistas.

O que não poderá haver são recuos, exclusões ou reduções de direitos das classes trabalhadoras sem que primeiramente se apresente medidas substitutivas equivalentes, compensatórias e qualitativamente mais vantajosas. Portanto, pelo fato de a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ter como fundamento os valores sociais e do trabalho, demonstrando que o Estado deve garantir os direitos sociais do trabalho, estes somente serão preservados se, sempre que ocorrerem necessidades de mudanças legislativas, for observado o princípio do não retrocesso social.

As alterações introduzidas na legislação trabalhista deverão ser interpretadas em conformidade com o texto constitucional, sob pena de serem declaradas inconstitucionais, haja vista que os direitos do trabalhador, enquanto direitos sociais fundamentais, não são passíveis de supressão ou mitigação de sua eficácia pelo Estado. Por esse motivo, tanto os órgãos de fiscalização e controle, quanto os órgãos jurisdicionais, devem combater abusos ou interpretações lesivas da legislação trabalhista, não tolerando quaisquer práticas atentatórias aos direitos fundamentais do trabalhador e à promoção de sua dignidade.

REFERÊNCIAS

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição. 7. ed. 16 reimp. Coimbra: Almedina, 2003.

DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467, de 2017. São Paulo: LTr, 2017.

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1Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Itaúna. E-mail: thiagopenido@yahoo.com.br

3 Salienta Mello que: “Com efeito, as classificações históricas valeram-se da categoria de gerações de direitos para explicar a evolução dos direitos fundamentais, concepção que poderá ser útil à historiografia do constitucionalismo, mas que passa a errada impressão de que uma geração de direitos substitui ou sucede a anterior, quando todo o fenômeno dos direitos fundamentais na história consiste num permanente acrescentar novas espécies jusfundamentais às já reconhecidas. A história dos direitos fundamentais é uma história de densificação e ampliação, não de sucessão.” (2001, p. 239) No mesmo sentido Gomes: “Denota-se dessa interação expansionista dos direitos fundamentais a necessidade de uma abordagem holística, de modo que as distinções entre os mesmos baseadas nas gerações e nas dimensões individuais e coletivas figuram como partimentalizações inadequadas. Assim, além da reafirmação de que todos os direitos humanos são interdependentes e inter-relacionados, a abordagem holística reconhece que todos eles são essenciais, estão sujeitos a violações, e à realização de cada um deles possui caráter instrumental na realização dos demais.” (2003, p.128).

4 Segundo Galuppo (2004, p. 417): Os direitos humanos transformaram-se em direitos fundamentais somente no momento em que o princípio do discurso se transformou no princípio democrático, ou seja, quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação jurídica limitada pela faticidade do direito, que implica sua positividade e coercibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de legitimidade. Os direitos fundamentais representam a constitucionalização daqueles direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais, que são, por isso, reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos demais direitos. (2003, p. 233). Sarlet cita o critério do plano de positivação para diferenciar os conceitos de direito humanos e direitos fundamentais: “o termo ‘direitos fundamentais’ aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se atribuem ao ser humano com tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional e, que, portanto, aspiram à validade universal, revelando inequívoco caráter supranacional.”

5 “A lo largo del siglo XIX el proletariado va adquiriendo protagonismo histórico, a medida que avanza el proceso de industrialización, y cuando desarrolla una conciencia de clase reivindica unos derechos económicos y sociales frente a los clásicos derechos individuales, fruto del triunfo de la revolución liberal burguesa. A partir de entonces el derecho al trabajo, a sus frutos y a la seguridad social pasan a ser las nuevas exigencias, cuya protección jurídica se reclama. Bajo este aspecto se puede considerar como la carta de estos nuevos derechos el Manifiesto Comunista, redactado por Marx y Engels en el año 1848.” (LUÑO, 2007, p. 38).

6 No direito comparado, há decisões sobre a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso social. Nesse sentido, o acórdão n. 39/84 da Corte Constitucional Portuguesa: […] Que o Estado não se dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe está cometida, isso só poderá ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas, quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir a tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção. Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica –, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a proteção directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (…) Quer isto dizer que, a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação, positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social (Diário da República n.º 104/1984, Série I de 1984-05-05).