DISCURSO NEOLIBERAL E PRECARIZAÇÃO DO MUNDO JUSTRABALHISTA: A NECESSÁRIA HUMANIZAÇÃO DAS TÉCNICAS

NEOLIBERAL DISCOURSE AND PRECARIZATION OF THE LABOR LAW WORLD: THE NEED FOR THE HUMANIZATION OF TECHNIQUES

Juliana Coelho da Silva1

Paulo Henrique Tavares da Silva2

Maria Aurea Baroni Cecato3

Recebido: 08/04/2018

Aprovado: 04/05/2018

 

RESUMO: O artigo tem como objetivo fazer um diálogo entre o direito civil humanizado e o direito do trabalho, a fim de repensar a proteção contratual do trabalho dentro de um paradigma neoliberal e de precarização da mão-de-obra. Discute-se a possibilidade do Direito do Trabalho contemporâneo se apropriar das novas construções teóricas do Direito Civil humanizado buscando rediscutir os paradigmas contratuais trabalhistas, a fim de enfrentar os desafios postos a partir do discurso neoliberal modernizante da legislação trabalhista em tempos de crise econômica.

Palavras–chave: Neoliberalismo. Precarização. Teoria dos contratos. Contrato de trabalho. Direito Civil humanizado.

 

ABSTRACT: The article aims to make a dialogue between humanized civil law and labor law, in order to rethink the contractual protection of labor within a neoliberal paradigm and precariousness sof the work force. It is discussed the possibility of the contemporary Labor Law to appropriate the new theoretical constructions of Humanized Civil Law see king to rediscuit the labor contractual paradigms in order to face the challenges posed from the labor legislation modernizing neoliberal discourse in times of economic crisis.

Keywords: Neoliberalism. Precariousness. Theory of contracts. Contract of work. Humanized Civil Law.

1 INTRODUÇÃO

O contrato de trabalho é fenômeno típico de uma economia capitalista e esta, atualmente, vive uma crise sistêmica, sofrendo constantes modificações. De fato, é perceptível o surgimento de formas de arregimentação de mão de obra no cenário mundial, substituindo as relações tradicionais entre capital e trabalho, inclusive com a inserção das tecnologias da informação (TICs), gerando crescimento do setor informal, além de fortes pressões pela flexibilização do emprego nos moldes tradicionais, a exemplo da aprovação recente, no Brasil, da Lei da Terceirização (Lei nº13.429/2017) e da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467).

Apoiando-se na premissa de que o direito do trabalho deve ser uma técnica de humanização das técnicas, propõe-se nesta pesquisa uma crítica a regulação contratual das relações de trabalho, embasada numa perspectiva de humanização do direito civil, que avança com relação à constitucionalização, visando à efetividade do princípio de solidariedade, do desenvolvimento humano, em atenção à igualdade e ao primado da dignidade da pessoa humana e especialmente abrangendo a hipervulnerabilidade e os processos de exclusão social.

Assim, este artigo tem como objetivo propor um diálogo entre o direito civil humanizado e o direito do trabalho, a fim de repensar a proteção contratual do trabalho dentro de um paradigma neoliberal, de crise do capitalismo e de precarização da mão-de-obra.

O presente trabalho tem como o problema o seguinte questionamento: é possível que o direito do trabalho se beneficie e se aproprie da humanização do direito privado no âmbito dos contratos de trabalho para superar os perigos de um discurso neoliberal de redução dos direitos sociais em prol do crescimento econômico?

Parte-se da hipótese de que o direito do trabalho deve ser encarado como uma técnica que humaniza as técnicas, de forma que é possível traçar novos rumos para este ramo do direito a partir do desenvolvimento de novos parâmetros contratuais protetivos para os trabalhadores, a fim de superar o discurso neoliberal. Para tanto, além da utilização da técnica de pesquisa bibliográfica e documental, será utilizado o método hipotético-dedutivo.

O artigo está subdivido em três seções. A primeira, visa a abordar a organização liberal do mercado de trabalho e a teoria civilista clássica, trazendo as bases da teoria contratual civilista clássica contrapondo-a com a mercantilização da mão de obra e a falácia da autonomia contratual.

A segunda seção analisa a ordem social do mercado de trabalho que surgiu no encontro das políticas keynesianas e do Estado de bem-estar social na primeira metade do Século XX. Nesse quadro se insere a construção das legislações trabalhistas em basicamente todo o Ocidente e, no Brasil, especificamente a edição da CLT, ocasionando a divisão que perdura até os dias atuais entre o contrato de trabalho típico e o contrato civil de prestação de serviços.

Finalmente, a terceira seção tem como objetivo repensar os parâmetros contratuais para as relações trabalhistas: análise à luz do paradigma da contemporânea humanização do direito privado.

2 ORGANIZAÇÃO LIBERAL DO MERCADO DE TRABALHO E TEORIA CIVILISTA CLÁSSICA

Dois aspectos relevantes emergem do âmbito da relação que se faz entre a organização liberal do mercado de trabalho e a teoria civilista clássica. O primeiro deles concerne à compreensão de que a justiça é condição inerente aos contratos e a segunda se refere ao contexto da mercantilização da mão-de-obra e da clara falácia que representa a dita autonomia contratual. Este último pode também ser colocado em outros termos, traduzindo-se no questionamento sobre quem, efetivamente, pode ser considerado sujeito da líberdade de trabalho.

2.1 A teoria contratual clássica: quem diz contratual, diz justo.

Inicialmente, é importante lembrar que o surgimento do instituto contratual está indissoluvelmente ligado ao conceito de operação econômica. Em síntese, à medida em que houve crescente expansão das atividades de produção, troca, distribuição de serviços, as regras jurídicas necessitavam dar uma resposta adequada para a proteção das novas exigências e interesses que emergiam (ROPPO, 2009, p. 22).

Assim, o que se percebe é a relatividade do contrato: “o contrato muda a sua disciplina, as suas funções, a sua própria estrutura segundo o contexto econômico-social em que está inserido” (ROPPO, 2009, p. 24). Importante ressaltar que as primeiras elaborações da moderna teoria do contrato foram pensadas pelos jusnaturalistas do século XVII, contemporaneamente ao nascimento do capitalismo. Ademais, a primeira grande sistematização legislativa de um “direito dos contratos” foi levada a cabo no período da Revolução Francesa, pelo código civil francês (Code de Napoleon), em 1804, constituindo-se em bandeira e legitimação das sociedades burguesas ascendentes (ROPPO, 2009, p. 28).

Com efeito, a primeira ideia que emerge deste primeiro paradigma contratual é a ideia de liberdade irrestrita de contratar e autonomia plena quanto ao conteúdo. Os contratantes, deveriam utilizar sua soberania de juízo e de escolha e decidir a estipulação ou não do negócio com aquela contraparte, cabendo apenas a elas determinar a extensão do conteúdo das cláusulas firmadas. Pode-se dizer assim, que estava-se diante de uma liberdade negativa, derivada do ideário do laissez faire, laissez passer: os poderes públicos (legislador e juízes) não poderiam se imiscuir na livre escolha dos contraentes privados (ROPPO, 2009, p. 32).

O contraponto da liberdade contratual era a responsabilidade também ilimitada pelos compromissos assumidos. Tratava-se de um vínculo tão forte que poderia ser equiparado à lei4. O raciocínio é uma conclusão extraída da própria lógica do mercado, que necessita de previsões e cálculos das operações econômicas (ROPPO, 2009, p. 35): se cada um é absolutamente livre para comprometer-se ou não, uma vez que o fizesse ficaria ligado de modo irrevogável à palavra dada, o que se convencionou chamar de pacta sunt servanda.

Nesse momento não era possível sequer cogitar em igualdade material ou justiça substancial. Isso porque a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo fato do conteúdo do negócio jurídico corresponder exatamente à vontade livre dos contratantes, determinada pelos seus próprios interesses, reflexo da igualdade jurídica formal (paridade dos cidadãos perante a lei) (ROPPO, 2009, p. 35). Em síntese, liberdade contratual e igualdade formal eram sinônimo de justiça nas relações econômicas.

Quanto à liberdade de contratar, Enzo Roppo (2009, p. 37) alerta que ela demonstra a dissolução do vínculo de grupo, e de Estado, que aprisionava o indivíduo e lhe impedia a plena expansão de suas potencialidades produtivas. É a restituição do poder do indivíduo da abstrata possibilidade de determinar sozinho o seu destino no mundo das relações jurídicas.

Com feito, essa era a concepção clássica do Direito Civil, que privilegiava não só o individualismo, mas a defesa do patrimônio. Tinha como características ser estruturalmente estático, atemporal, de perfil linear e matriz cartesiana, além de que “o sujeito merecia a atenção do Estado em função de seu patrimônio e não por sua condição de pessoa” (FEITOSA, 2017, p. 242). Assim, a ordem jurídica era voltada para uma perspectiva patrimonialista, formalista e para a máxima garantia da liberdade e da autonomia da vontade dos atores em prol do mercado.

No Brasil, o Direito Civil se alinhava com o cenário acima, especialmente pela inspiração napoleônica. O Código Civil de 1916, nascido sob a égide do liberalismo econômico, buscava resguardar os direitos e liberdades individuais contra a intervenção estatal, plasmando um modelo estático, adverso às mudanças sociais, políticas e econômicas, naturais ao longo do tempo.

Nesse sentido, o direito privado compenetrava-se na proteção patrimonial e na crença do individualismo como dogma, lastreado em pilares de um regime dedicado à aquisição de bens e a circulação de riquezas. Com efeito, visava eminentemente o contratante e o proprietário em sua atuação mercadológica, para poder contratar e fazer circular riquezas sem restrições ou entraves legais. O Código Civil era a garantia legal mais elevada quanto as relações patrimoniais (TEPEDINO, 2004, p. 2-3).

2.2 Trabalho livre para quem? A mercantilização da mão de obra e a falácia da autonomia contratual.

Trabalho subordinado e modo de produção capitalista estão intrinsecamente relacionados. Com efeito, a força de trabalho se mercantiliza e é justamente o contrato que vai regular a troca entre a prestação do trabalho e a contraprestação em dinheiro. Em síntese, “a liberalização da força de trabalho, da sua transformação em mercadoria livremente alienável pelo proletariado e livremente adquirível pelo capital (ROPPO, 2009, p.39). ”

Ressalta Ramos Filho (2012, p.15) que a noção de trabalho, quando tratado como mercadoria pela economia passa a ser entendido como instrumento de comparação entre bens distintos, em dupla dimensão. Com efeito, “é um dos fatores na produção da riqueza e é também a condição para que os indivíduos, com autonomia, tenham acesso à riqueza”.

A força de trabalho humana, a essa altura, era encarada como bem passível de locação, o mesmo tratamento dado as coisas. Buscava-se enquadrar a exploração do trabalho em um dos tipos jurídicos já conhecidos, negando, por completo, a natureza e singularidade da relação de trabalho. Veja-se que a afirmação da liberdade dos trabalhadores se confunde com a conquista da burguesia que via como um entrave a sua atividade industrial a manutenção das relações feudais e servis de produção. Na prática, a modificação da exploração do trabalho humano da servidão feudal para uma perspectiva contratual não representou a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.

No Brasil, a legislação trabalhista anterior a 1930 era esparsa, com objetivo de disciplinar condições mínimas de trabalho. Assim, o Código Civil de 1916 era o regulador oficial de toda e qualquer relação de trabalho (lícito, material ou imaterial) na modalidade de locação de serviços, diante da inexistência de um instituto jurídico capaz de captar a singularidade do trabalho. O reflexo imediato dessa regulamentação civilista era o descompasso entre a realidade social e o individualismo jurídico codicista, combinado com o tratamento mais favorável ao locatário da prestação de serviço (MELLO FILHO, 2013, p. 217-220).

A doutrina liberal previa que mediante livre consentimento, o trabalhador se submeteria ao empregador, sem coerção, apenas utilizando-se da sua razão autônoma para tanto. Contudo, essa autonomia da vontade que abarcava a livre estipulação e a força obrigatória dos contratos não se compatibilizava com a possibilidade de uma das partes exercer poder sobre o outra (RAMOS FILHO, 2012, p.26). Ramos Filho (2012, p.27) destaca ainda, que não se tem apenas simples subordinação de uma parte a outra, do empregado ao patrão, pois “a submissão é mais ampla: a ordem capitalista subordina por impor e por naturalizar determinado modo de vida”.

Pode-se dizer, inclusive, que nesse paradigma de organização liberal do mercado de trabalho, a liberdade para trabalhar não existia. Isto porque, de um lado, diante da desigualdade de fundo entre as partes contratantes, o trabalhador só era livre para desempenhar seu papel nas estritas condições impostas por quem lhe comprava a força de trabalho. Por outro lado, nem todos que tinham a disposição em trabalhar, conseguiam um posto de trabalho, justamente em face do elevado número de desempregados, que funcionava como moderador salarial e indutor de subserviência (RAMOS FILHO, 2012, p.24).

Segundo Enzo Roppo (2009, p.40), a real intenção do princípio da igualdade formal entre empresário e empregado subordinado é que ambos devem aparentar serem iguais, na ideia de possuidores de mercadorias equivalentes a negociar. Ocorre que tal igualdade revela-se ilusória, já que o bem trocado pelo segundo é uma expressão da sua própria pessoa.

Em suma, é justamente o véu do liberalismo e da autonomia que dissimula a falácia da vontade: com uma sociedade dividida em classes há profundas desigualdades substanciais entre quem detêm riqueza e poder e contraentes que não dispõem senão de sua força de trabalho.

Ou seja, se em um polo está o empresário com pleno controle do mercado de trabalho e no outro o operário que procura emprego, tem-se uma assimetria de poder expressa pelas condições econômicas e sociais, o que deixa o empregado sem nenhum poder real de participar na determinação do conteúdo contratual; é, na construção popular e coloquial, “pegar ou largar”. O contrato, dessa forma, é fruto da necessidade premente de uma das partes e não da composição de vontade de ambos os contraentes.

3 ORDEM SOCIAL E MERCADO DE TRABALHO: ENTRE O CONTRATO DE TRABALHO TÍPICO E O CONTRATO CIVIL DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

O Estado intervencionista nasce da falência do modelo liberal, que acarretou severos problemas na esfera social, especialmente a transformação da força de trabalho em mercadoria, razão pela qual a sociedade passou a clamar por solução para as questões de tal natureza.

Mauro Cappelletti (1999) demonstra a mudança que ocorreu no papel do direito e do estado na sociedade moderna, com a implantação do Welfare State. Este modelo estatal seria resultado especialmente da atividade legislativa com fins de política social, a exemplo do direito do trabalho, das normas relativas à saúde e à seguridade social em conjunto com a intervenção forte do estado na economia. Dessa maneira, a legislação tem caráter que tipicamente se destina a produzir transformações na sociedade, com uma preponderância dos direitos sociais aos individuais.

Observe-se que as intervenções estatais, no estado de bem-estar tinham principalmente a natureza de preceitos legislativos, no que se convencionou chamar de “orgia das leis”, em sentido diametralmente oposto ao que se viu na fase liberal antecedente. “Com o desenvolvimento de um aparato administrativo de alto grau de complexidade, “o Welfare State, na origem essencialmente um “estado legislativo”, transformou-se, assim, em “estado administrativo”, na verdade em “estado burocrático”, não sem o perigo de sua perversão em “estado de polícia” (CAPPELLETTI, 1999, p. 39)

Ressalta Dupas (2001, p. 110) que a teoria econômica keynesiana manteve a expectativa de que o Estado iria harmonizar a tensão entre propriedade privada dos meios de produção e gestão democrática da economia. De fato, forneceu as bases para um compromisso de classe, abraçando até mesmo politicamente as bandeiras do pleno emprego e da redistribuição de renda. Assim, o Estado, além de provedor de serviços sociais e regulador do mercado, tornou-se mediador das relações e dos conflitos sociais.

Os alicerces do sistema de proteção social brasileiro são constituídos nesse cenário de bem-estar social, como resultado de um Estado que buscava o desenvolvimento, a evolução do sistema de proteção social e dava ênfase às relações entre o capital e o trabalho com reduzida atenção aos direitos sociais e à cidadania. Por outro lado, o autoritarismo era uma de suas principais marcas, visando regular aspectos concernentes à organização dos trabalhadores assalariados dos setores mais modernos da economia, utilizando-se da antecipação de algumas necessidades, de modo a reduzir a legitimidade das lideranças trabalhistas em suas reivindicações.

Foi a Revolução de 30 que deu início ao processo de centralização e concentração do Estado brasileiro, abarcando desde o sistema político até os direitos sociais e do trabalho. Assim, no final da década de 1930, foi estabelecido o conjunto normativo dos contratos de trabalho. Não se pode olvidar que o modelo brasileiro de intervencionismo não era totalitário (muito menos se cotejado com os nazifascistas alemão e italiano de meados do Século XX e sequer preconizava a planificação da economia, muito embora, profundamente influenciado pela ideia de corporativismo, alicerçado na cooperação entre as classes sociais, desenvolvimento nacional e paz social (RAMOS FILHO, 2012, p.49, 87-88).

Assim, surge a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e a consequente montagem do sistema jurídico trabalhista baseado em um modelo contratual único, impositivo, de pressupostos fixos. Dessa forma, em 1943, houve a afirmação de um contrato específico que representava a relação de trabalho.

Por conseguinte, esvaziou-se a previsão do Código Civil, restando ali, a partir de então, as relações enquadradas na tipologia de “locação de serviços”, ou seja, apenas as modalidades que não se identificavam com a prestação subordinada, onerosa e não eventual de serviços a um empregador. Em outros termos, as relações autônomas permaneceram sobre a égide civilista.

A ideia que se queria passar era que o trabalho fosse a preocupação máxima da sociedade, centro das relações humanas e, portanto, merecedor de uma legislação específica. Posteriormente, a expressão “locação de serviços”, desprestigiada por sugerir atentado à dignidade da pessoa humana e por ser inadequada à realidade social subjacente marcada pela desigualdade e exploração, foi, então, substituída pela prestação de serviço (MELLO FILHO, 2013, p.215-247).

Sublinhe-se que o traço distintivo que justifica a persistência do instituto civilista da prestação de serviços é o modo da condução da prestação de serviços: se autônomo, com organização própria, iniciativa e discricionariedade (VILHENA, 2005, p. 532), a relação será regida pelo direito civil. Se marcada pela subordinação jurídica, pelo direito do trabalho.

Ocorre que como se pode perceber, a linha distintiva entre autonomia e subordinação é bastante tênue. Com efeito, o critério diferenciador não corresponde à relevância das consequências alcançadas com a distinção conceitual. A importância reside no fato de que as relações de emprego, por sua relevância socioeconômica e singularidade em sua dinâmica jurídica estão sob a tutela do Direito do Trabalho. Assim, os vínculos fronteiriços àqueles previstos na CLT e legislação trabalhista não necessariamente estão sujeitos à tutela laboral.

Não é ocioso destacar que conforme lição de Maurício Godinho Delgado (2017, p.12), o trabalho, mais especificamente o emprego, é o instrumento de afirmação individual, social e econômica mais importante dentro da sociedade capitalista. Aliás, foi através dessas ideias que se construíram as noções de democracia social, preconizando que economia, sociedade e políticas públicas deviam primar pela valorização do trabalho e do pleno emprego.

Informa Amauri Mascaro Nascimento (2011, p.352) que o contrato empregatício é sui generis, tendo maior limitação da autodeterminação dos contratantes, pois grande parte do conteúdo do negócio jurídico já está predeterminado em lei. O mesmo autor ainda aduz que “o ordenamento jurídico reconhece a superioridade contratual de uma das partes e tem instrumentos de controle que, adequadamente usados, devem poder oferecer melhor equilíbrio entre os sujeitos do contrato (NASCIMENTO, 2011, p. 366).

Com a criação de uma forma contratual própria, o que se queria era abandonar as perspectivas individualistas, que não se mostravam adequadas para o diálogo das relações de trabalho, posto que alicerçadas na igualdade formal e na supervalorização da autonomia da vontade, tendo em vista a vulnerabilidade e a hipossuficiência de cada trabalhador em face do seu patrão.

Nesse ponto é importante ressaltar que o arcabouço legal centrado na proteção do trabalhador tem normas peculiares e por isso é mais ampla e atenta para as necessidades decorrentes da relação entre empregado e empregador, representando, pelo menos na teoria, um patamar civilizatório diferenciado que reflete forte proteção do Estado.

Com efeito, a partir da crítica da aplicação das noções jurídicas liberais às relações capital-trabalho, surgem as concepções que preconizavam a necessidade da intervenção estatal por intermédio do Direito Social. Assim, a igualdade formal passou a ser contraposta com a evidente dessemelhança de condições de trabalho e ao direito do trabalho coube a compensação das desigualdades, viabilizando o estabelecimento de uma relação equilibrada.

Vale ter em conta que não se pode cogitar de liberdade plena do trabalhador da pactuação do negócio jurídico já que frente à quantidade de valores que para ele se encontram em jogo, sua autonomia de decidir sobre se vincular ou não é praticamente nula. Assim, mitiga-se a autonomia da vontade a partir da publicização do contrato de trabalho, que passa a ser regulado em parte pela legislação trabalhista vigente, com margem para acordo limitada quanto a determinadas matérias, como, por exemplo, saúde e higiene no meio ambiente de trabalho, trabalho do menor, jornada de trabalho, trabalho em local insalubre e perigoso, etc.

A presença do Estado nas relações trabalhistas representava, de um lado, o estabelecimento de standards que garantissem a sobrevivência material da classe trabalhadora, bem como, para evitar a transformação do trabalho humano em mercadoria, e de outro, a garantia da paz social. Com efeito, diante da impossibilidade de separar o objeto do contrato de trabalho dos seus próprios sujeitos, proteger a prestação de serviços significa proteger a dignidade do próprio indivíduo, que dele não se aparta e por meio dele se afirma (MELLO FILHO, 2013, p. 227, 229).

4 REPENSANDO OS PARÂMETROS CONTRATUAIS PARA UM DIREITO CONTEMPORÂNEO DO TRABALHO: ANÁLISE À LUZ DO PARADIGMA DA HUMANIZAÇÃO.

O processo histórico que conduziu à afirmação do direito do trabalho não se encerrou com a afirmação autônoma desse ramo do direito. Mais que uma autonomia científica, a singularidade da problemática relacionada ao trabalho justificou que o olhar constitucional e da própria construção jurídica acerca dos direitos humanos e fundamentais se voltasse de forma diferenciada para as relações sociais produtivas.

Merece destaque o processo de “constitucionalização” do ramo justrabalhista após a edição da Constituição Federal de 1988. Especialmente no que concerne a sobrevalorização que a Carta Maior conferiu aos direitos fundamentais como um todo e aos direitos sociais, notadamente ao elevar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ao lado da dignidade da pessoa humana, à condição de fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e IV). Desse modo, consolidou-se um modelo de Estado Democrático de Direito.

Um processo semelhante ocorreu com o Direito Civil, que também se “constitucionalizou”, diante da opção legislativa em favor de um Estado Social. Em síntese, como propõe Soares (2012) o direito civil clássico, plasmado em modelos codificados e de pouca (ou nenhuma) valorização humana, se revigorou quando a dignidade da pessoa humana e os direitos de solidariedade aportaram no ordenamento jurídico brasileiro. Enfraqueceu-se, então, a summa divisio entre o direito público e o direito privado e a interpretação das relações jurídicas privadas passa a se sujeitar à força normativa da Constituição.

Gustavo Tepedino (2004, p.13, 18-19), abordando o traçado das premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil, alerta para a necessidade de o intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da Constituição. Assim, o civilista deveria vincular-se diretamente aos preceitos constitucionais, prestigiando sempre os princípios constitucionais em detrimento de leis ordinárias. O autor adverte, ainda, que não se pode pensar a constitucionalização (ou socialização, despatrimonialização) do direito civil como uma mera adjetivação para que não se corra o risco de que o este ramo do direito continue como antes, com seus institutos e categoriais imutáveis, servindo os adjetivos apenas como elementos externos (TEPEDINO, 2004, p.22).

Ocorre que mesmos as visões constitucionalizadas dos ramos privatistas do direito, que trouxeram avanço nas concepções tradicionais, tanto do direito laboral quanto do direito civil, não são mais capazes de responder aos reclamos sociais, especialmente no que concerne ao mundo do trabalho, sendo certo que se está diante de um outro turning point na doutrina jurídica, especialmente tendo em vista a conjuntura econômico-social que se apresenta no território brasileiro.

Segundo José Eduardo Faria (2005, p. 12), O Brasil é visto, desde os anos 70, como uma sociedade industrializada, majoritariamente urbana, apresentando um nível mínimo de organização e defesa de direitos por parte da classe dos trabalhadores e das classes médias assalariadas. Todavia, trata-se “de uma sociedade tensa e explosiva, estigmatizada por indicadores socioeconômicos perversos.” 

É importante salientar que nosso país enfrenta uma crise estrutural que pode ser fracionada em planos. Na visão de Faria (2005, p.12), no plano sócio econômico enfrenta-se uma crise de hegemonia dos setores dominantes e, no plano político, uma crise de legitimação do regime representativo. Por outro lado, no plano jurídico institucional ainda está-se diante de uma crise na própria matriz organizacional do Estado, pois este, aparentemente, não consegue mais flexibilizar um modelo ao mesmo tempo centralizador e corporativo, cooptador e concessivo, intervencionista e atomizador, tanto dos conflitos sociais quanto dos indicadores econômicos. Some-se ao cenário delineado, o fato de que o Brasil está inserido numa economia de caráter neoliberal, bem como num contexto globalizado, onde até mesmo a soberania e os limites espaciais dos Estados são mitigados e assumem nova forma.

Nesse mesmo sentido, em perspectiva global, alertam Bauman e Bordoni (2016, p. 11, 15, 18) que a noção de crise do setor econômico indica uma situação complexa e contraditória, resultante da incapacidade Estatal de cumprir suas promessas, o que gerou sua própria erosão. A crise, então, seria caracterizada pela combinação simultânea de uma aposta econômica em âmbito mundial e as medidas tomadas para lidar com isso, o que impacta diretamente o cidadão, contribuindo para a complexidade do mal-estar social. Some-se a isso, a característica mais problemática dessa situação: a duração da crise, tendo em vista que se esvaiu o tempo das conjunturas desfavoráveis que podiam ser resolvidas em um curto período de tempo.

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que o fantasma do desemprego estrutural leva o pensamento econômico hegemônico a questionar acerca da centralidade do trabalho na nova ordem mundial globalizada e até mesmo de sua persistência enquanto elemento produtivo essencial, o trabalho passa a ser tratado como o grande vilão de toda crise econômica: o discurso que ressoa é o de que o custo do trabalho inviabiliza as atividades produtivas, que os modelos trabalhistas de contratação estão obsoletos e que o direito do trabalho precisa ser flexibilizado, para que possa funcionar.

Não é ocioso destacar que este foi o mote utilizado pelo governo federal para a aprovação da Lei da Terceirização (Lei nº13.429/2017) e da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) que solapam direitos dos trabalhadores, ao permitir a terceirização de atividades fins, incorporam a supremacia do acordado sobre o legislado, retirando inclusive a possibilidade do Judiciário se manifestar sobre o conteúdo material das negociações coletivas, criam novas formas contratuais que são eminentemente lesivas ao trabalhador, precarizando sobremaneira a mão de obra. Isso tudo pelo questionável pretexto de que o Brasil precisaria crescer economicamente, tendo em vista sua estagnação e baixa produtividade, causada por um suposto comportamento protecionista advindo de uma legislação trabalhista “cheia de detalhes” que aumenta o custo da mão de obra nas empresas.

Além disso, está-se diante de mudança radical em direção a novas formas de organização da atividade econômica, especialmente a partir da inserção da Tecnologia da Informação (TI) nas cadeias produtivas. A “economia do compartilhamento” é um dos exemplos de um futuro em que as trocas online se tornam prevalentes e o povo substitui a corporação no centro do capitalismo. E essas alterações são capazes de transformar substancialmente as relações de trabalho, e, por conseguinte, sua regulação contratual5. Com efeito, estudos predizem que em 2020, entre 30% e 40% dos trabalhadores norte-americanos serão contratistas independentes (SALAZAR-XIRINACHS, 2017, p. 81).

Em realidade, boa parte da sustentação das mudanças implementadas no Brasil tem origem nas transformações do cenário mundial mudou. A partir daí o no Brasil vêm desse quadro – a partir da inserção de novas formas de emprego que substituíram “as relações tradicionais entre capital e trabalho, gerando crescimento do setor informal e forte flexibilização do emprego, com consequências apenas parcialmente estabilizadoras da oferta total de trabalho ” (DUPAS, 2001, p. 116).

É nesse contexto “de crises econômicas, redução de custos como meio de enfrentamento da competição empresarial e avanço tecnológico que permite maior produção com menor número de empregados” que se pode falar de um “direito contemporâneo do trabalho” (NASCIMENTO, 2011, p.26) Este conserva a sua característica de proteção do trabalhador, mas alia-se ao avanço da tecnologia e desenvolvimento, com a consequente modificação de alguns de seus institutos (NASCIMENTO, 2011, p. 24).

Em razão das novas fontes de fragmentação jurídica no mundo do trabalho (SUPIOT, 2016, p. 47), é preciso encontrar novas rotas e óticas que propiciem a ampliação da proteção ao trabalho. Nesse intuito, vale destacar que perceber o conceito de empregado com base na vinculação a um contrato de trabalho é insuficiente para a garantia da eficácia da tutela laboral num cenário de crises e avanços tecnológicos.6

Em verdade, o direito, e mais especificamente o direito do trabalho, deve ser encarado como “uma técnica de humanização da técnica” (SUPIOT, 2007, p.144). Foi justamente essa “função antropológica” do Direito que permitiu a sobrevivência humana ao maquinismo industrial, bem como a utilização de novas técnicas sem que o homem fosse destruído por elas. Em suma, trata-se de uma ferramenta, interposta entre o homem e a máquina, para proteção do primeiro.

Com efeito, o contrato da época contemporânea, seja de trabalho, seja de índole civil, fundamenta-se em novas premissas, extraídas da teoria civilista dos contratos, em especial do solidarismo constitucional7. Pode-se citar, entre elas: a eticidade, que valoriza, por exemplo, a boa-fé objetiva (art. 113 do Código Civil), a operabilidade, que visa a efetividade na atuação jurisdicional, e, por fim, a socialidade, exigência da observância de uma função social dos contratos, na forma do art. 421 do Código Civil (NASCIMENTO, 2011, p.358).

Especificamente quanto aos negócios jurídicos, Roppo (2009, p. 296) informa que a vontade dos contraentes já não conta, pois o fenômeno que se desenha é o da decadência do indivíduo, da progressiva erosão da sua liberdade e autonomia em prol das exigências sociais. Betti (2008, p.88) complementa essa constatação, ao indicar que “o instituto do negócio jurídico não consagra faculdade de “querer” no vácuo, como apraz afirmar a certo individualismo, que não foi extirpado da hodierna dogmática”. O mesmo autor ainda esclareceu que o negócio jurídico é o ato pelo qual o indivíduo regula, por si, os seus interesses, nas relações com os outros ao qual o direito liga os efeitos mais conformes à função econômica – social.

Assim, a causa que passa a ser avaliada como o mais importante elemento do contrato, é a sua razão de ser, sua realidade8. O elemento causal é, então, o que permite colocar freios à liberdade individual. Ressalte-se a incidência do interesse público sobre a causa do negócio, fazendo parte diretamente da função social do contrato, como filtro para concepções de autonomia privada que não são mais conciliáveis com o atual ordenamento jurídico (PERLINGIERI, 2007, p. 287, 290).

O que se pode extrair da conjuntura acima é que o direito civil não ficou imune ao movimento de humanização e é possível observar uma reconstrução do sistema segundo o valor da pessoa humana. Nas palavras de Pietro Perlingieri (2007, p.34) “o pluralismo econômico assume o papel de garantia do pluralismo também político e do respeito à dignidade humana”.

Em um primeiro momento, a solidariedade superou “o mito do fim superindividual, não concebendo um interesse superior àquele do pleno desenvolvimento do homem. Este último constitui princípio fundamental de ordem pública” (PERLINGIERI, 2007, p.36). O tema da solidariedade também deve ser entendido em relação à igualdade e dignidade social, a fim de garantir uma existência digna, comum a todos, numa sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem exclusão social.

O dever de solidariedade e valor da mesma fomentam, então, no Brasil, o Estado Democrático e Social de Direito. Trata-se de um projeto de uma sociedade embasada na dignidade da pessoa humana, cooperação, igualdade substancial e justiça social, que abarca a livre iniciativa, mas se contrapõe à lógica da competição desmedida e do lucro desenfreado.

Encara-se, assim, o desenvolvimento numa perspectiva “terceiro desenvolvimentista”, que nos dizeres de Bresser-Pereira (2016, p.163), nasce do fracasso econômico e político da globalização, da financeirização e do neoliberalismo, objetivando a garantia do catching up dos países em desenvolvimento, a democracia, a redução das desigualdades e a proteção ambiental.

Em síntese, a revolução do direito civil se dá em dois momentos. No primeiro, o do direito civil constitucionalizado, ocorre a restauração da primazia da pessoa, em detrimento do seu patrimônio; neste novo momento, ora intitulado, de humanização do direito civil, exige-se a garantia da efetivação dessa primazia humana. Trata-se de ir além do simples enlace com o constitucionalismo social, abarcando as “hipervulnerabilidades geradoras de exclusão social, para assumir feição de direito social, efetivando a dignidade e qualidade de vida de sujeitos e categorias” (FEITOSA, 2017, p. 254).

Conforme propõe Feitosa (2017, p.241) “o novo direito civil deve abranger a hipervulnerabilidade como motor importante da garantia da dignidade da pessoa humana e, com isso, se aproximar dos direitos sociais”, a fim de “ultrapassar a resignação programática tradicionalmente afeita aos direitos sociais, fato que continua a ocorrer no Brasil, mesmo na vigência da Constituição Federal atual”. A mesma autora ainda recomenda uma guinada dogmático-conceitual do direito privado à luz dos direitos humanos, “na perspectiva de soluções que transcendam a satisfação individual ou mesmo coletiva (no sentido grupal) da questão, para alcançar abrangência de categorias, em viés transindividual e intergeracional ” (FEITOSA, 2017, p.253).

É seguindo esse viés que se aborda a caracterização e o funcionamento das relações de trabalho, a partir de um diálogo possível e desejável com o direito civil humanizado. O retorno aos novos fundamentos contratuais civilistas faz-se necessário considerando as transformações econômicas e sociais que redesenharam o direito do trabalho, demonstrando a inadequação das noções clássicas da proteção laboral ainda vigentes na legislação brasileira.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo propor um diálogo entre o direito civil humanizado e o direito do trabalho, a fim de repensar a proteção contratual do trabalho dentro de um paradigma neoliberal, de crise do capitalismo e de precarização da mão-de-obra.

Observou-se que num primeiro momento as construções do direito civil liberal privilegiavam o individualismo e a defesa do patrimônio, além de se embasarem nos conceitos de liberdade irrestrita de contratar, autonomia plena quanto ao conteúdo do contrato e vinculação irrevogável à palavra dada. Essa formatação jurídica era incompatível com a regulamentação do mercado de trabalho, pois o bem trocado entre os contratantes (o trabalho) é expressão da própria pessoa. Assim, dava-se azo à falácia da vontade e à perpetuação da exclusão social estrutural: em uma situação de extrema desigualdade na determinação do conteúdo contratual, o negócio jurídico era fruto de uma necessidade premente de uma das partes e não da vontade de ambas.

Assim, o pensamento jurídico reagiu aos reclamos da burguesia industrial em ascensão, impondo limites ao capital e construindo um ramo específico da ciência jurídica (o Direito do Trabalho) com princípios e contornos próprios, capazes de revestir de dignidade a figura do trabalhador e de apreender a complexidade da relação entre capital e trabalho, recusando inclusive os institutos clássicos de direito civil.

Todavia, o que se observa é que a teoria dos contratos de trabalho nos moldes existentes atualmente já não atende mais às necessidades próprias da sociedade. Basta observar a crise econômica que assola o país, bem como o discurso neoliberal de desregulamentação como fator de propulsão da atividade econômica e de incremento da competitividade nos mercados globais, com a redução dos custos da produção e encargos sociais. Some-se a isso a mudança radical em direção às novas formas de organização da atividade econômica, especialmente a partir da inserção da Tecnologia da Informação (TI) nas cadeias produtivas. Assim, está-se diante de um cenário de precarização crescente da mão de obra e desconsideração do desenvolvimento em suas acepções humana, social e ambiental.

Curiosamente, enquanto o Direito do Trabalho no Brasil tem se modificado de forma a retirar direitos sociais historicamente conquistados pela luta dos trabalhadores, o Direito Civil caminha em sentido diametralmente oposto, atendendo aos reclamos da sua humanização, avançando inclusive para além dos parâmetros da constitucionalização. O direito civil humanizado abarca o constitucionalismo social como norte, mas tem objetivo de efetivar a proteção das hipervulnerabilidades geradoras de exclusão social, a fim de ser um “direito civil socializado”.

Não é ocioso destacar que a aplicação da constituição às relações privadas (constitucionalização) deve ser encarada como um método, mas a humanização é mais do que isso, é a axiologia da pessoa como centro do direito, é a ideologia que concretiza a dignidade da pessoa humana. O sujeito-pessoa deve ser fundamento do direito e, por conseguinte, neste prisma, o contrato deve ser instrumento de promoção da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, o direito do trabalho contemporâneo tem o seguinte dilema a ser resolvido: ou cede aos imperativos da flexibilidade, ampliação da autonomia das partes, e portanto, acaba por retornar às matrizes individualistas do Direito Civil Clássico; ou se apropria das novas construções do Direito Civil humanizado.

A solução parece óbvia, mas pendente de vontade política para sua efetivação. Faz-se necessária, assim, a aproximação do mundo do trabalho aos novos fundamentos contratuais civilistas, alicerçados na causa do negócio jurídico, solidarismo, eticidade (boa-fé objetiva) e observância da função social do contrato, considerando as transformações econômicas e sociais que redesenharam o direito do trabalho, demonstrando a inadequação das noções clássicas da proteção laboral ainda vigentes na legislação brasileira.

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1Mestranda em Direito Econômico na Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB) e Professora das Faculdades Asper – João Pessoa. E-mail: julianatavaress_@hotmail.com

2Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento Econômico pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Univ. Federal da Paraíba (PPGCJ-UFPB); Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa (PPGD-UNIPÊ). E-mail: paulo.tavares@unipe.br

3Doutora em Direito do Trabalho pela Université de Paris II – Panthéon-Assas (U-2 – França); Professora permanente e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa (PPGD-UNIPÊ). E-mail: mariaaurea.cecato@gmail.com

4 É a fórmula do artigo 1134 do Código de Napoleão: “os contratos legalmente formados têm força de lei para aqueles que os celebram”.

5 Apontam PEREZ-DIAZ e RODRÍGUEZ que essas transformações havidas no mundo do trabalho contemporâneo atraem para o debate público e acadêmico dois temas essenciais: como reforçar os compromissos de empregabilidade assumidos pelas empresas em casos de contratos por tempo reduzido; como configurar um sistema de indenizações que proporcione uma adequada proteção aos trabalhadores ditos “flexíveis” (2017, p. 20).

6 Relatório produzido pelo Fórum Econômico Mundial sugere, diante da velocidade das transformações decorrentes daquilo que se denominou de 4ª Revolução Industrial, que as políticas públicas pensadas inclusive a partir da perspectiva de uma portabilidade de salvaguardas e benefícios entre empregos, além do equivalente tratamento legal nas diferentes formas de trabalho e emprego (WEF, 2016, p. 30).

7 A Constituição Federal de 1988 trouxe para o nosso ordenamento o princípio jurídico da solidariedade como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Isso foi feito ao estabelecer, em seu artigo 3º, entre outros fins, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, visando a erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e regionais.

8 Nesse ponto, interessante relação entre contrato como operação econômica e a noção de causa contratual proposta pelos Professores Maria Aurea Baroni Cecato e Paulo Henrique Tavares da Silva (CECATO; SILVA, 2016).