CIDADANIA E TRABALHO INFORMAL NA FORTALEZA DO SÉCULO XIX

CITIZENSHIP AND INFORMAL WORK IN THE FORTRESS OF THE 19TH CENTURY

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima1

Daniel Camurça Correia2

Recebido: 13/03/2018

Aprovado: 26/04/2018

 

RESUMO: O artigo analisa a tensão entre o poder público e os trabalhadores comuns da cidade de Fortaleza, durante o século XIX. Em um primeiro momento os trabalhadores, em meio à tradição local, circulavam livremente pelo espaço público. Na segunda metade do século XIX, após intenso processo de modernização e aformoseamento da cidade, os populares foram obrigados a migrarem para a marginalidade, proibidos de trabalhar em nome da civilidade e dos bons costumes, com amparo no direito posto que institucionalizava tais limitações de circulações. O objetivo do texto é entender como o processo de afastamento dos vendedores e carregados de seus direitos costumeiros ao trabalho foi retirado paulatinamente de suas mãos. Conclui-se com esta pesquisa que as leis aprovadas pela elite política fortalezense beneficiaram a emergente classe comerciante em detrimento dos trabalhadores pobres, afastando-os do acesso à cidadania e aos seus direitos. Chama a atenção que o direito já consolidado da liberdade de ir e vir, amparado pela garantia do não significou impedimento para a aplicação de uma legislação local que limitava exatamente a mesma liberdade de ir e vir. Tal fato provoca inevitavelmente a discussão sobre a força do direito em sociedade fortemente patrimonialista.

Palavras-chave: Cidadania. Trabalho comum. Trabalho informal. Direito positivo.

 

ABSTRACT: The article analyzes the tension between the public power and the common workers of the city of Fortaleza during the nineteenth century. At first the workers, in the midst of the local tradition, circulated freely in the public space. In the second half of the 19th century, after an intense process of modernization and embellishment of the city, the popular were obliged to migrate to marginality, forbidden to work in the name of civility and morality, under the protection of law, since it institutionalized such limitations of circulation . The purpose of the text is to understand how the process of removal of the sellers and loaded with their customary rights to work was gradually withdrawn from their hands. It is concluded from this research that the laws passed by the political elite from Fortaleza benefited the emerging merchant class to the detriment of the working poor, away from access to citizenship and their rights. It is worth noting that the already consolidated right to freedom of movement, supported by the guarantee of freedom, did not impede the application of local legislation that limited exactly the same freedom to come and go. This inevitably provokes the discussion about the force of law in a strongly patrimonial society.

Keywords: Citizenship. Common work. Informal work. Positive law.

1 INTRODUÇÃO

Pensar na cidadania nem sempre implicou em reconhecer a conquista e ampliação de direitos. Apesar do histórico da luta da burguesia pela conquista da cidadania, nem sempre a população mais pobre teve acesso às conquistas fruto das revoluções burguesas. As complexidade e contradição históricas de tais revoluções fez com que, mais tarde, as conquistas da burguesia voltassem em desfavor das classes coadjuvantes dois processos revolucionários. Mesmo as conquistas já pacificadas após a Revolução Francesa, como direito ao voto, limitação do poder dos monarcas, descentralização administrativas conheceram um longo percurso até que passaram a estar presentes nas constituições da maior parte dos países do mundo. Ainda que se trata de uma presença meramente retórica, eram importantes porque discursivamente denunciavam um ponto a ser alcançado pelas sociedades, ainda que distante da concretização econômica, social e política.

Desta forma, é que a Constituição do Império do Brasil procurou alguma limitação para o poder da Coroa, o que não conseguiu. Incluiu o voto direito para eleições – capacidade eleitoral baseada no princípio de renda, seguindo o melhor receituário liberal do século XIX -, garantiu a liberdade de expressão, mas não abandonou a escravidão, espinha dorsal da manutenção do próprio projeto imperial brasileiro.

Neste cenário, é que nesta parte do Império do Brasil, em Fortaleza, no decorrer do século XIX, os populares, os quais realizavam seus trabalhos em meio a cidade, foram encaminhados para a informalidade. Em meio a ruas disformes, sem calçamento, a cidade tinha uma simples, mas importante rede de abastecimento oriunda do interior. Com o final do século XIX, novas condições econômicas e políticas alteraram esse sistema.

A definição do termo populares decorre de uma observação moral própria. Era assim que as classes economicamente inferiores eram identificadas no conjunto do tecido social desde o Brasil Colônia. Quando da eclosão da Inconfidência Baiana, na manhã de 12 de agosto de 1798, a cidade de Salvador viu-se toada por Avisos a tratarem de declaração de princípios revolucionários, de direitos do homem e participação do povo na vitória francesa, além de declararem-se contrários às imposições tributárias da então “Rainha de Lisboa” (JANCSÓ, 1996). Na descrição das autoridades que decidiram pelo enfrentamento da Inconfidência, com posterior processo e julgamento, “além do povo armado, a plebe está listada na rubrica inferiores e soldados das milícias” (JANCSÓ, 1996, p. 121). Estes eram os termos com que se identificava o povo, a grande maioria da população sem formação e função fixa na sociedade desde a Colônia.

Assim, o objetivo deste artigo é analisar as perdas que os trabalhadores comuns sofreram com a instalação e implementação de leis mais rigorosas, modernas e positivadas, dentro da província da capital cearense. Se no início do século XIX os vendedores e carregadores ambulantes eram peças fundamentais para o abastecimento da cidade, na segunda metade do século, se tornaram sinônimos de doença, sujeira e desrespeito às normas.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram feitos arrolamento de fontes documentais, tais como livros de memória de escritores cearenses; dicionário de época; Atas de Correspondência da Câmara Municipal de Fortaleza, década de 1880; o jornal liberal A Constituição, de 1876; o Código de Posturas do Município de Fortaleza, reeditado em 1916; além da pesquisa bibliográfica.

Tais documentos permitiram entender como a tradição costumeira foi, aos poucos, substituída por um rigoroso sistema de normas que afastou os populares do acesso à cidadania.

2 OS TRABALHADORES COMUNS

Depois de viajarem trazendo consigo as mercadorias para serem vendidas em Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção, os ambulantes vindos de Aracati e Arronches – interior do Ceará – deparavam-se, no início do século XIX, com uma pequena cidade, recoberta de uma grama falha e tímida. Adentrando na capital cearense, chegavam a um espaço aberto, com ângulos definidos por pedras que serviam para amarrar os “jericos”. Dentro do largo, havia assimetricamente espalhadas algumas mogumbeiras e castanholas – geralmente floridas. Era ali que acontecia a feira livre (MENEZES, 1938).

A partir de seu olhar da Fortaleza de final da década de 1930, Raimundo de Menezes via o quanto a antiga “feira nova” era “feia” e “irregular”. O autor mostrava a singela praça que, anos mais tarde, seria a atual Praça do Ferreira. Segundo o memorialista era “tudo tão primitivo, tão ingênuo, tão encantador!” (MENEZES, 1938, p. 16). Ou seja, era com palavras de forte apelo dramático e saudosista que Menezes chamava a atenção de seus ouvintes da Rádio PRE-93, para o aspecto bucólico da pequena Fortaleza “doutrora”.

Para Menezes, a feira não tinha alma, seu chão revelava o atraso da pequena cidade através da irregularidade do solo e do capim ralo. Porém, não deixava de comentar que este primitivismo era sedutor e encantador. Pois, na sua ótica, atrelada a ideia de primitivo, está a paz, a tranquilidade, a calmaria, que talvez ele não tivesse acesso nos idos de 1937-8.

Com esta imagem é possível perceber a tentativa em visibilizar a ideia de “evolução” pela qual passou a capital cearense. No decorrer do século XIX tem-se primeiramente um espaço minimamente organizado para a prática de uma feira livre. Com o passar do tempo, por volta de 1825, já com o nome de praça D. Pedro II, chegava ali o boticário Antonio Rodrigues Ferreira. “Sua botica ficou sendo, desde então, o ponto de reunião obrigatório da cidade. Era ali que se abrigavam os políticos da atualidade no cavaquear costumeiro de todas as tardes” (MENEZES, 1938, p. 17-8).

Por seus préstitos políticos dentro de Fortaleza, acabou por ter à praça o nome do dito boticário, depois de sua morte, em 29 de abril de 1859. Menezes apresentava, então, a “evolução” que a Praça do Ferreira sofria até chegar “aquelas pedras de calçada [que] sabem de histórias encantadoras da Fortaleza antiga! São uma reminiscência viva do tempo da Praça do Ferreira dos nossos avôs!” (MENEZES, 1938, p. 18).

Não se pode esquecer, neste momento, que o memorialista descrevia um espaço existente no período anterior à seca de 1877. Deste modo, os valores, os significados, as formas de vivenciar e organizar o espaço eram concebidos no nível pessoal, de satisfação e de um certo romantismo. Quer-se dizer com isto que o espaço da feira nova era legítimo para aquela sociedade – tanto para vendedores e consumidores, quanto para os poderes públicos – afinal de contas, não existia um lugar regulamentado pela municipalidade para gerenciar o comércio de subsistência da cidade. Assim, a população dependia do funcionamento da feira. Na verdade, esta concepção romantizada da sociedade não é exclusividade do olhar sobre Fortaleza. Se por um lado, a obra Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, publicada em 1933, abriu caminho para um olhar positivo sobre a mestiçagem brasileira, em contrário ao pensamento conservador autoritário de Oliveira Vianna por exemplo, de cunho eugênico; por outro lado, na esteira de Casa Grande & Senzala os olhares sobre a subordinação do negro, a pobreza e a ausência total e qualquer preocupação do Estado com a maior parte da população, constitui-se na perspectiva idealizada de uma perversa dominação do que na verdade era. Desta maneira, o olhar do cearense coincide com a visão que passou a ter-se da miséria e da forma excludente da vida, como se estas pudessem ser concebidas como natural, como o “bom selvagem”.

A feira era um local de uso. As pessoas utilizavam o espaço para se encontrarem, fazer negócios, conversarem, namorarem, cometer pequenos delitos. Era uma trama de sociabilidades diversas, a qual, do ponto de vista da estética, não era necessariamente uma questão importante aos moradores. É o memorialista que chama a atenção para isso. Não pode ser afirmado que a população olhava para o lugar que transitavam diariamente da mesma forma (CERTEAU, 1994).

A presença dos vendedores ambulantes era uma constante, principalmente dos vendedores de carne verde (fresca), que das vilas vizinhas traziam seus produtos para serem vendidos na feira nova. Estavam presentes variados tipos de trabalhadores ambulantes, tais eram os de peixe, frutas, verduras, leguminosas, água.

Observou-se na documentação arrolada que os vendedores e carregadores, na primeira metade do século XIX, em Fortaleza, andavam e trabalhavam tranquilamente pela cidade. Desde que não ocasionassem o desassossego público, poderiam circular e usar livremente ruas e praças. Por isso, neste texto, serão denominados trabalhadores comuns, ou seja, de acordo com as regras costumeiras existentes na cidade, antes da aplicação mais incisiva do direito positivado, estes homens e mulheres eram parte fundamental da comunidade. Logo, não eram importunados pelo poder público – sem obrigações tributárias (THOMPSON, 1998).

A partir do texto de Raimundo Menezes é possível vislumbrar a origem de alguns produtos que eram vendidos na feira fortalezense, como a carne de Messejana e Parangaba e cajus de Aquiraz e Arronches.

Para uma melhor compreensão da organização do mercado formal dentro da capital cearense, o qual fez com que Fortaleza despontasse sobre as outras cidades do estado, o estudo de Maria Auxiliadora Lemenhe é fundamental por abordar a trajetória sócio-econômica da província. Afirma a Autora que “a hegemonia econômica e político-administrativa de Fortaleza, iniciada na primeira metade do século XIX, mais precisamente em torno dos anos 20 e 30, completa-se na sua segunda metade. Contrariando a afirmação corrente que define os anos sessenta como um marco do início da decadência de Aracati e principio da supremacia da capital, este estudo nos permite concluir que, nesta época, Fortaleza já era o núcleo urbano dominante no Ceará” (LEMENHE, 1991, p. 110).

Muitos destes produtos eram tão característicos para os fortalezenses que a simples presença de seu cheiro alertava os fregueses das novas mercadorias que chegavam à cidade. O caju, em sua época, exala um perfume tão forte que impregnava na roupa e nos materiais de trabalho comuns, trazendo a lembrança para os moradores que acabaram as frutas sobre a mesa ou que é necessário fazer os refrescos para a merenda do fim de tarde. Aguadeiros, peixeiros e açougueiros espalham pela cidade as suas marcas indeléveis (CORBIN, 1987, p. 40).

Pensar estes trabalhadores comuns requer um rigor metodológico que ajude a categorizá-los de uma maneira que as suas vivências e experiências estejam sempre em primeiro plano. Quer-se dizer com isso que não é mais prática do intelectual conceituar um trabalhador pelo seu mister, mas a partir de suas práticas de vida. “Não se trata tanto de negar o fato de os indivíduos pertencerem a categorias profissionais, mas de examinar como as relações sociais criam solidariedades e alianças” (CERUTTI, 1998, p. 40).

Ou seja, essas pessoas que atravessavam diariamente a cidade de Fortaleza para trabalharem, não esperavam autorização do poder público para executar seus misteres. A praça pública era pequena e simples, mas conseguia receber aqueles que precisavam, de alguma forma, sobreviver. O problema para o poder provincial residia no fato destes trabalhadores não serem regulamentados, o que significava dizer que não pagavam impostos.

Muitos deles, se eram escravos fugidos, ou se tinham cometido crimes, permaneciam invisíveis para o poder jurídico da época. Vigiar e punir se fazia necessário na capital da província. Logo, a necessidade em regulamentar e registrar cada vez mais se fazia necessário (CORBIN, 1987).

Eram trabalhadores que contribuíam no pensar e elaborar mecanismos normativos para o controle, bem como a tentativa de melhorar os sistemas de distribuição de serviços e produtos no espaço urbano, em um momento em que o poder público das cidades oitocentistas, dentro e fora do Brasil, nem sempre poderia oferecer estrutura necessária e organizada pelo Estado (FOUCAULT, 1990).

Em consequência, o poder provincial era obrigado a se adequar e aceitar o ir e vir dos trabalhadores que tinham livre acesso às ruas, calçadas, praças e ao livre comércio. Com o crescimento da cidade em meados do século XIX e crescente aumento de empresas vindas da Europa, o espaço dos trabalhadores comuns diminuiu. A cidade se projetava para um discurso mais moderno e civilizatório, o que significaria dizer que a presença dos populares começaria a incomodar uma emergente classe comercial e industrial que desejava se apossar da prestação de serviços (PONTE, 1993).

3 A CIDADE NÃO PERTENCE AOS TRABALHADORES COMUNS

Para o caso de Fortaleza, o historiador Raimundo Girão escreve no seu livro Geografia Estética de Fortaleza que as ruas, durante a segunda metade do século XIX, sofreram muitas transformações e rearticulações, sendo algumas retificadas, como a da

Boa Vista (nos sucessivos trechos: Rua das Belas, da Pitombeira e da Alegria), seguida paralelamente, rumo sul, pelas Ruas da Palma (Major Facundo), Formosa (Barão do Rio Branco), Amélia (Senador Pompeu) (GIRÃO, 1959, p. 115).

E ainda aquela que forma esboçadas, como a do Patrocínio (General Sampaio); alargadas, ou mesmo ampliadas, segundo o mapa cartográfico de Silva Paulet.

Segundo Girão, de acordo com o mapa da capital cearense, algumas ruas ainda não estavam traçadas completamente, como por exemplo, as do Quartel ou Larga, do lado leste da Carolina. A travessa chamada Flores só atingiu a Praça da Sé depois de 1859, “com o sacrifício da travessa da Matriz”.

“À direita do Pajeú, o comêço da Rua do Sampaio, a êsse tempo chamada Rua do Norte; e, na praia, algumas construções que formariam as ruas do Chafariz (José Avelino) e da Alfândega (Dragão do Mar)” (GIRÃO, 1959, p. 115), apresentavam uma cidade se reconstruindo a todo vapor. As prescrições vigentes estabeleciam novos princípios urbanos, que resultavam na tentativa de criar espaços de fluxo contínuo, bem como garantir que as ruas pudessem respirar mais aliviadas – sendo estas alargadas e ampliadas. Com Adolf Herbster, em 1875, expandiu-se o mapa de Fortaleza em linhas que formam um jogo de xadrez:

Para leste, até a Rua da Aldeota (hoje Nogueira Acioli); para sul, até a rua dos coelhos (Domingos Olímpio), e para oeste, até as Praças Fernandes Vieira e Paula Pessoa. Alguns arruados mal dispostos aqui e ali tiveram de desaparecer para que prevalecessem os alinhamentos das quadras ou quarteirões projetados (GIRÃO, 1959, p. 117).

A cidade estava sendo redesenhada. O alinhamento das ruas representaria a tradução de novas necessidades e perspectivas a respeito do uso do espaço público, no qual o realinhamento seria feito em benefício de um discurso. A cidade se modernizava, mas, não para garantir a manutenção do uso diário dos populares. Com ruas retas, matematicamente delimitadas, a lógica do campo, o sentido natural da vida e do trabalho perde espaço para o pensamento positivado (LEMENHE, 1991).

Foi a presença dos habitantes e moradores da cidade que garantiram um mínimo de resistência e permanência de suas casas, rotas de trabalho, comércio e prestação de serviços. Algumas ruas não puderam ser alteradas pelo fato de servirem aos moradores da cidade, pois

Sómente não mataram êstes a rua que se fizera ao longo da estrada de Messejana (Av. Visconde do Rio Branco), porque a necessidade dessa artéria, para o transporte dos abastecimentos vindos dos tabuleiros do Ceará, era mais vital que os desejos artístico do urbanista (GIRÃO, 1959, p.116).

Ou seja, a estrada de Messejana era fundamental para os moradores da capital cearense, pelo fato dali ser o percurso que os vendedores de frutas, verduras e hortaliças utilizavam para saírem dos tabuleiros4 e se dirigirem à feira. É preciso entender que a manutenção desta “artéria” era muito mais importante do que os “desejos artísticos” dos interessados em aformosear o espaço urbano.

A dinâmica jurídica precisou negociar com a esfera pública (CARVALHO, 1981). Não adiantava elaborar processos normativos e aplicá-los, sem levar em consideração a necessidade urbana. Caso a rua fosse retirada, seriam necessários desvios que resultariam em atrasos, possíveis perdas de mercadorias, seja pelo clima, ou pelas intempéries urbanas – criminalidade, por exemplo.

Com o dito desenvolvimento urbano e a chegada de empresas estrangeiras, o poder público voltou seus olhos para o mar. As mercadorias – e os trabalhadores vindos do interior – não faziam mais parte do hall de importância do governo da época. As negociações entre empresas e as províncias resultavam em acordos que beneficiam os estrangeiros, os quais receberam isenções para instalarem suas empresas, e o poder público, o qual recebeu “apoio”, para aprovarem leis que beneficiavam o estabelecimento e monopólio destes novos empreendimentos (BETHEL, 2011).

Rastreando os vendedores de carne verde dentro das feiras é possível adentrar no universo dos variados trabalhadores comuns existentes dentro da capital cearense. Por conta disto, ouvir os reclames dos vendedores indicavam as portas a ser aberta para conhecer o espaço da rua, a forma como os dispositivos normativos eram ou não aplicados na urbes.

Segundo Jacqueline Lindenfeld o discurso oral dos feirantes seduz os seus fregueses, garantem aos trabalhadores espaços de luta e convivência. São saberes construídos socialmente, que são passados de geração a geração e reformulados de acordo com tempo e com o espaço de sobrevivência e conflito destes trabalhadores (LINDENFELD, 1999, p. 31-44).

De acordo com a documentação arrolada, mesmo com a maciça presença dos vendedores comuns de carne verde, faltava, em alguns momentos, o referido produto na capital da província. Pois, o abastecimento era irregular, e, mesmo que os trabalhadores das ruas trouxessem a carne necessária para o consumo da cidade, esta era apreendida pelos guardas municipais, agora, acusando os vendedores de adentrarem em Fortaleza com produtos nocivos à saúde5.

Se antes, a vinda de carne fresca do interior era permitida e necessária, a partir da segunda metade do século XIX, passa a ser considerada anti-higiênica, nociva, doente, pois não fora fiscalizada pelos profissionais da saúde, responsáveis em atestar ou não a qualidade dos produtos (CORBIN, 1987). É preciso lembrar que com a alteração do fluxo comercial da cidade, não mais voltado para o interior, e sim, para o mar, os produtos vindos das pequenas cidades do Ceará não adentravam no espaço urbano na quantidade e qualidade necessária para abastecer a população.

Da mesma forma, quando os produtos chegavam até a feira, precisavam ser fiscalizados. Isso gerava um custo que os ambulantes não poderiam arcar. Por serem proibidos de vender os produtos e ainda terem seus itens apreendidos, preferiam burlar a lei que não abria nenhum espaço de diálogo ou negociação, gerando transtorno para o poder público local.

Com o surgimento de novas empresas estrangeiras, responsáveis pelo abastecimento da cidade, os trabalhadores comuns passaram a ser tratados pelo poder público, por meio da aprovação de um Novo Código de Posturas, como transgressores da norma. Ou seja, os trabalhadores comuns tinham um mister que, a partir de então era considerado proibido, se não seguissem as regras estipuladas pelo poder público.

Pelo fato da carne ser escassa, o preço não era acessível6, para a maior parte da população – tinha dias que superava o valor de quarenta réis, a verde; e mil réis, a carne seca ou salgada7. Os fortalezenses eram obrigados a criarem animais domésticos para o consumo, ou dependerem de comerciantes que traziam o produto sobre encomenda, surgindo, assim, um comércio informal de alimentos que extrapolava os limites da feira. Muitas pessoas se dirigiam até a feira da cidade para fazerem as compras da semana. Por outro lado, partes consideráveis dos fortalezenses esperavam que os vendedores ambulantes passassem por suas portas e janelas, com os produtos que precisavam consumir.

Nasce, a partir de 1870, o conceito de trabalho informal na cidade de Fortaleza. Isso significa dizer que, se na primeira metade do século XIX os trabalhadores eram parte da comunidade, a partir de então, tornam-se estanhos em sua própria terra. Com a assinatura do governo imperial, os trabalhadores comuns se tornam informais – impossibilitados de executar seus saberes e fazeres em sua cidade.

Esta alteração de ordem jurídica e política desestabilizou a rede comercial local. Em consequência, o número de assaltos aumentou. Raimundo Ferreira de Oliveira, em 1876, foi preso por ter roubado carne do açougueiro Francisco Rodrigues Alves8. De lá retirou porções de carnes sem autorização. Esta prática, dentro da capital cearense, estava ficando cada vez mais comum, por causa do exorbitante valor do produto. Inclusive, de modo geral, o preço dos alimentos estava dificultando a venda e o consumo destes.

Outros produtos, como o côco (conforme tamanho), custava $100; a carga de água, $300; o peixe fresco chegava a custar $600 o quilo. Para ter uma ideia clara da alta dos preços, é preciso observar que a jornada de trabalho (jornal) valia na época $600, diariamente, o que demonstra o quanto viver em Fortaleza estava difícil, obrigando a população a criar diversos mecanismos de sobrevivência fora da esfera formal e convencional estabelecida pelo poder público (MENEZES, 1938, p. 115-6).

Durante o transporte dos alimentos, estes eram levados em cestos de palhas – balaios, em bacias sobre as costas dos jumentos. Adentrando no espaço urbano os vendedores informais, pelas estradas de Baturité e Acarape, geralmente, despistavam guardas e fiscais da Câmara, causando um barateamento no preço dos víveres. O que também era muito criticado, tanto pelos poderes públicos quanto pelos ambulantes era a inconveniente presença dos atravessadores, que compravam a carne antes de chegar em Fortaleza, aumentando o preço da mesma, na medida que se tornavam concorrência para os vendedores ambulantes. Incomodavam aos sanitaristas e fiscais por não terem seus produtos inspecionados, correndo o risco de trazerem doenças para a urbe. Quando o produto não era apreendido, era inspecionado por médicos sanitaristas, independente do resultado destes, os ambulantes teriam de pagar o serviço realizado pelos mesmos, em forma de multas, taxas e impostos, encarecendo o preço final e espantando a freguesia.

Deve ser ressaltado que a relação entre médicos, fiscais e vendedores das ruas não aconteciam de forma harmônica. Não é difícil encontrar, nas Atas da Câmara da Cidade de Fortaleza, pedidos e reiterações de pedidos para trazer, tanto para a feira quanto ao Matadouro Público, um considerável número de praças (guarda municipal). Pois os vendedores e carregadores informais, indignados com a apreensão de seus produtos alimentícios, entravam em conflito com os fiscais e médicos, resultando no espancamento de ambas as partes.

Conflitos estes que se intensificaram na medida em que o poder público, juntamente com a população mais bastada da cidade, construíram o Mercado Público, no final da década de 1890, o qual deveria ser utilizado para toda e qualquer comercialização de produtos alimentícios, de maneira regular, protegido por lei, no intuito de garantir a continuidade e a qualidade dos alimentos. Segundo Sebastião Ponte, “o Mercado de Ferro, concluído em 1897 na gestão de Accioly, se configura como a primeira grande obra municipal em que o intendente Rocha teve esmerada participação” (PONTE, 1993, p. 38). A partir de então, as regras referentes ao controle da venda de carnes, frutas, legumes e água, passaram a ser mais incisivas sobre os informais.

“Só podem ser empregados no serviço de talhar e vender carnes verdes, nos talhos ou açougues deste município, os indivíduos matriculados perante a Intendência” (CÓDIGO DE POSTURAS DA CAMARA MUNICIPAL DA FORTALEZA, 1916). Ou seja, o Código de Postura é reescrito, exatamente para impedir o acesso de homens e mulheres no talho e na venda de carne verde que não estivessem condizentes com os preceitos médicos, legais e policialescos.

Pois, mesmo que estes quisessem ter a referida matrícula, era preciso “juntar á petição attestado da autoridade ou de dois cidadãos qualificados do districto de sua residência, que abonem a sua conducta e attestado medico” (CÓDIGO DE POSTURAS DA CAMARA MUNICIPAL DA FORTALEZA, 1916, p. 13). É preciso lembrar que se tratando de um trabalho realizado por trabalhadores pobres, é impossível cumprir todas as solicitações. Consequentemente, os carregadores e vendedores eram proibidos de executarem suas tradicionais tarefas. Segundo Sebastião Ponte, “o Mercado de Ferro, concluído em 1897 na gestão de Accioly, se configura como a primeira grande obra municipal em que o intendente Rocha teve esmerada participação” (PONTE, 1993, p. 38)

Na tentativa de desmerecer os vendedores das ruas de Fortaleza, o governo buscava se aproximar dos fazendeiros que queriam manter o monopólio da venda de carne verde e seca, que cada vez mais se espalhavam pelas cercanias. A empresa Maia & Irmão, juntamente com a Intendência Municipal, elaboraram um contrato para garantir o monopólio, todavia ele não chegou a ser cumprido na sua íntegra, tendo em vista o fato que a Intendência prometera um sistema de vigilância, para coibir a venda informal, que foi impossível executar no nível prático, pelo número de pessoas que precisavam trabalhar informalmente.

Por outro lado, estas estratégias levaram homens e mulheres a se reorganizarem, inventando meios de, mais uma vez, enganar o poder instituído. Se os trabalhadores das ruas não conseguiram adentrar no Mercado de Ferro de Fortaleza, então, elaboraram meios de vender seus produtos fora dele, ao redor, criando um circuito paralelo de venda de alimentos, que se somava ao Mercado, complementando-o e/ou desfalcando-o.

O gado que era vendido dentro do mercado era morto no Matadouro Público – local também exclusivo para esta função. Todavia, a maior parte da carne vendida era proveniente de regiões mais distantes da cidade, fazendo com que as peças não fossem para o matadouro do Município, desviando-a da inspeção sanitária.

Eram, muitas vezes, nos fundos dos quintais, bem como nos pequenos açougues particulares que a carne era talhada e vendida, fazendo com que empresas de maior porte exigissem da Câmara medidas mais enérgicas contra os ambulantes.

Quando a carne verde saía do Matadouro Público nem sempre tinha o destino certo, ali trabalhavam pessoas que retiravam algumas peças para ser comercializada fora do Mercado de Ferro. Pelo fato do número de fiscais e praças ser insuficientes para controlar a entrada e saída de pessoas, não era difícil roubar e vender as carnes de gado vaccum: “Art. 34. – A carne que for tirada do matadouro público, só poderá ser vendida no mercado municipal ou nos açougues licenciados pela Intendência. Ao infrator a multa de trinta mil réis” (CÓDIGO DE POSTURAS DA CAMARA MUNICIPAL DA FORTALEZA, 1916, p. 11)

Além do mais, os vendedores e vendedoras de carne verde não tinham os equipamentos necessários para guardar a carne de um dia para o outro. Neste caso, tinham de oferecer o produto aos seus fregueses no mesmo dia que o gado fosse abatido, para a carne não perder a qualidade (CÓDIGO DE POSTURAS DA CAMARA MUNICIPAL DA FORTALEZA, 1916, p. 11). Deve ser lembrado que a carne salgada durava muito mais do que a carne fresca, pois o sal funciona como um conservante natural do produto.

Pelo fato de precisarem ser rápidos, com a venda de seus produtos alimentícios, os trabalhadores informais escondiam a carne dentro de cestos e balaios de palha, para se dirigirem ao centro de Fortaleza. Alguns iam de jumentos e outros a pé. Por causa do excessivo calor, a carne, ao derramar os líquidos ali existentes, sujava o vendedor e a rua, importunando os sanitaristas, fazendo com que estes cobrassem das autoridades responsáveis maior asseio para com o transporte de alimentos do matadouro para o centro da cidade (THEOPHILO, 2001).

Quando eram parados pelos seus já conhecidos fregueses, cortavam o pedaço desejado e negociavam o preço e a forma de pagamento. Os trabalhadores das ruas, geralmente utilizavam facas (peixeiras), facões ou machados – caso a carne estivesse com ossos. Dificilmente utilizavam os “serrotes e facas apropriados”, designados pela Câmara. Afinal de contas, estas lâminas tinham tamanhos e formatos específicos sendo mais caros e difíceis de serem encontrados.

Outro problema que os vendedores ambulantes enfrentavam, era a dificuldade em comercializar a carne de gados caprinos e suínos. Muitos destes animais eram criados em quintais, principalmente pela facilidade em cuidá-los e alimentá-los. Por outro lado, era necessário que os fiscais sanitários não descobrissem essas criações clandestinas, pois poderiam apreender e abater os bichos, trazendo perdas para os proprietários

Art. 81. – Fica prohibida a creação de porcos nos quintaes. O infractor pagará a multa de dez mil réis, apprehendendo o fiscal o animal, que será recolhido ao deposito, e não poderá d’ahi sahir senão para o talho; e alem da multa pagara o dono todas as despezas. Não sendo o animal procurado no prazo de cinco dias, sera talhado e vendido, revertendo o producto para os cofres municipaes” (CÓDIGO DE POSTURAS DA CAMARA MUNICIPAL DA FORTALEZA, 1916, p. 17).

E, ao tentarem vender seus produtos, os vendedores tinham algumas opções: ou vendiam em açougues clandestinos – muitas vezes em suas próprias casas; dirigiam-se para as praças designadas pela Câmara, no horário do meio dia; ou saiam pelas ruas de Fortaleza em busca de suas fiéis freguesas, que já estavam a sua espera nas portas e portões.

No final das contas, independente das leis, dos guardas, das prisões, da apreensão de produtos, da alteração do sentido das ruas, da mudança do mercado, os trabalhadores comuns, taxados pelo poder público de informais, não desapareceram. Pelo contrário, permaneceram no espaço público, e, diariamente lutaram para se perpetuarem na vida diária e em seus trabalhos – como todo e qualquer cidadão (BAKHTIN, 1993).

A possibilidade de um novo funcionamento econômico teve caráter determinantes nesta formação, o que fortalece a análise materialista da história do desenvolvimento capitalista, como registrada por Marx, a partir do cap. XIV de O Capital (MARX, 2013, p. 785). No progresso das relações econômicas e sociais do capitalismo, está, igualmente, o reordenamento vinculado – mas não dependente – das instituições jurídicas.

Como o início do desenvolvimento do capitalismo se deu na Inglaterra, foi lá que, por exemplo, em 1848 fora aprovada a lei de 10 horas de jornada de trabalho para jovens de 13 a 18 anos e para trabalhadoras; instrumento legal que somente após 1864 ganhou efetividade (MARX, 2013, p. 361). Até 1864, os casos eram julgados por tribunais compostos por quatro membros, sendo que três deles eram “fabricantes de fios de algodão. [...] Certamente, a composição deste tribunal era, por si só, uma violação aberta da lei” (MARX, 2013, p. 361). A exigência da modernização das relações econômicas traz também a revisão do arcabouço institucional da sociedade.

4 GARANTIA LEGAL NÃO USADA: O HABEAS CORPUS

Não se conhecem os motivos de, mesmo com uma tentativa de regulamentação, os abusos das autoridades não conseguiram ser corrigidos em favor de antigos trabalhadores que se viram mesmo privados de seu sustento, visto que nesta altura o ordenamento jurídico contava com uma preciosa garantia da liberdade de ir e vir: o habeas corpus, que foi incorporado ao direito brasileiro desde 1832.

Para um atento observador inglês no Brasil do século XIX, o Código de Processo Criminal de 1832 favorecia mais os criminosos do que protegia a sociedade (FLORY, 1981, p. 110). Embora o habeas corpus já estivesse presente na legislação brasileira desde 1830 com o então novo Código Criminal - a partir do art. 183 deste Código, que foi sancionado pelo Decreto de 16 de dezembro de 1830 e mandado executar pela Carta de Lei de 8 de janeiro de 1831 –, foi com o Código de Processo Criminal de 1832 que esta garantia pode concretizar-se no cotidiano brasileiro e tanta polêmica desencadeou.

Já na Lei de 15 de outubro de 1827 surgiu uma das principais inovações que a jovem nação brasileira introduziria: a figura do juiz de paz (eleito por aqueles que poderiam ser eleitores no âmbito de suas paróquias), em conjunto com os juízes de direito, nomeados pelo Imperador. Ao contrário destes, aqueles vieram na esteira da Regência liberal, que assumiu a direção do Império com a abdicação de Dom Pedro I e a menoridade do mais tarde Dom Pedro II.

O Código de Processo Criminal continha duas partes: a primeira parte que trata das instituições judiciárias, sua estrutura e localização nas províncias (com um título e 53 artigos). A segunda parte (com cinco títulos, dos artigos 54 a 355) trata das formas de procedimento, e regulamentou as prescrições, uma vez que o Código Criminal de 1830 não havia enfrentado a matéria. Uma terceira parte do Código de Processo Criminal organizava as disposições transitórias para o estabelecimento da justiça civil, com um título e 27 artigos.

Em 1832 estava constituída a primeira instância da justiça brasileira com três tipos de magistrados: os juízes de direito, os juízes paz e os juízes municipais, além de procuradores, Promotores Públicos e júri. O artigo 10 estipulava que os juízes de paz seriam eleitos por voto popular para um mandato de um ano. Em cada eleição quatro juízes de paz eram eleitos. O juiz municipal era nomeado pelo presidente da província respectiva, após proposta da Câmara Municipal, para um mandato de três anos. Os promotores eram nomeados pelo governo central e os procuradores provinciais para um mandato de três anos, a partir de uma lista elaborada e selecionada também pela Câmara Municipal (Art. 36).

A disputa entre liberais e conservadores durante o período regencial deu-se, sobretudo, em razão da competência dos juízes de paz também poderem expedir ordens de soluta, isto é habeas corpus. A vastidão territorial do Império do Brasil dificultava a chegada da autoridade central em seus mais distantes espaços. A alternativa de vinculação direta ao governo central, por meio da autoridade judicial, revelou-se prática importante para a manutenção da integridade territorial nacional; um desafio que somente se resolverá definitivamente em 1845, com a derrota da Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul. Ligados diretamente ao poder central, e com a possibilidade de evolução em sua carreira igualmente dependente deste poder central, os juízes de direito representavam este poder nos mais distantes municípios brasileiros. Havia, portanto, a garantia da presença da autoridade central em quase todos os quadrantes do País por meio da fidelidade dos juízes.

Neste cenário, sobressai o detalhe da competência para a soltura de réus presos pelos juízes de paz; estes eleitos, somente por aqueles que tivessem renda para constituir-se em eleitores. Numa realidade que acabava de abandonar as Ordenações Filipinas, em vigor desde o período colonial brasileiro, a introdução de uma legislação tão avançada, a trazer garantias processuais enfrentou forte oposição dos setores conservadores. Em 1837 os liberais são destituídos da Regência, com o movimento conhecido como Regresso, e governarão até 1841, quando o Imperador, de 15 anos, assume o comando do País até 15 de novembro de 1889. O Regresso representou o decisivo movimento contrário às reformas liberais, dentre as quais se destaca a competência para ordens de habeas corpus atribuída aos juízes de paz. Na verdade, com esta competência ditada pelo Código de Processo Criminal, pretendiam os liberais, de alguma maneira, diminuir os poderes do governo central, representados pelos juízes de direito, nomeados pelo Imperador. Estabelecida a competência para decidir sobre a liberdade de ir vir nas mãos dos juízes de paz, restava aos juízes de direito pouco espaço de e movimentação em favor dos interesses das autoridades centrais.

A expedição ordens habeas corpus foi imediatamente vinculada à desordem e à impossibilidade de o Império em manter sua autoridade. Como eventuais presos poderiam ser soltos sem as ordens dos juízes de direito, nomeados pelo Imperador, a proliferação de jornais a não aceitarem a independência e desejarem a forma republicana; o crescimento de agremiações estudantis e os movimentos separatistas na Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará assustaram as lideranças políticas, a enxergarem na atomização do poder a única salvação do Império. A resposta configurada na Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841 transformou-se num verdadeiro instrumento de Estado e transferiu a competência dos juízes de paz para o Chefe de Polícia, nomeado pelo governo central. Tratava-se de uma verdadeira fortificação da autoridade estatal, vista como a única a poder garantir a integridade territorial do Brasil. É nesse sentido que se expressam Oliveira Vianna (1959, p. 21) e Nabuco de Araújo (1998, p. 201).

Parece interessante que se ressalte a utilização de um instrumento processual como o habeas corpus em meio ao debate político e social da época. O recurso ao habeas corpus do período imperial não somente tornou possível o contato do Brasil com as doutrinas penais mais civilizadas, como introduziu na cultura judiciária a forte ideia da defesa das garantias individuais.

Por outro lado, o recrudescimento da legislação desfavorável ao habeas corpus de 1841, e que permaneceu até a Constituição de 1891, pode emprestar natureza explicativa ao fenômeno de não se ter notícia de sua utilização no caso que se estuda. Como não havia mais a garantia de eventual concessão desta ordem em favor dos trabalhadores que se viram limitados no exercício de sua a atividade profissional e de sobrevivência, não haviam ao que se recorrer para, pelo menos, pensar-se, por exemplo, numa legislação transitória que não impusesse sacrifícios a uma parcela da população que mal possui direitos de subsistência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar na conquista dos direitos nem sempre direciona a realidade para as lutas burguesas. Os populares, os quais não tinham os meios legais para negociarem seus direitos e deveres, perderam espaço de lazer, vida e convívio na esfera pública.

Na corte imperial, os acordos, cada vez mais estreitos, entre a elite política e econômica brasileira, junto aos comerciantes ingleses e franceses, garantiram a diminuição da presença popular na participação da vida econômica em suas cidades. Tradicionalmente, a modernidade trouxe novos suplementos, porém, erradicou a pluralidade de sujeitos que precisavam viver e trabalhar no Brasil.

O incremento desta nova realidade deveu-se ao apoio institucional de novos caminhos formulados pela administração do Estado imperial brasileiro. Se a introdução de garantias legais, como o habeas corpus, foi, num instante inicial, revelador de uma nova dimensão de tratamento da população com uma perspectiva de inédita extensão de direito a largos setores social absolutamente distantes de tais garantias, deve ser ressaltado que, num momento posterior, a recuperação de antigos parâmetros de legalidade, como a revisão do habeas corpus, bloqueou a tentativa de estabelecimento dimensão de igualdade. Tais marchas e contramarchas não se acham dissociadas da imposição econômica de que se tratou no centro.

Merece atenção o papel da organização do Poder Público e de sua tentativa de domesticação de forças econômicas ainda que incipiente. Se é verdade que não se pode falar numa fase industrial do capitalismo no espaço urbano de Fortaleza – nem do Brasil -, por outro lado parece evidente que a força econômica primária que se desenvolvia, como venda de carnes, sinaliza que a intenção dos nexos entre Estado e sociedade para a organização da atividade econômica parecem visíveis. Nesta tentativa de ordenação do funcionamento econômico, pode-se dizer que um Poder Público local ainda incipiente e despreparado pessoal e tecnicamente procurou exercer sua tarefa de organização da produção que se tinha na realidade concreta, de forma ainda a exibir sua capacidade de ação. O aparato judicial integrou esta ação do Poder Público e, desta maneira, confirmou que integrava a rede burocrática de organização de uma economia local, mas que dava seus primeiros passos na vinculação racional entre produção, consumo e mercado.

Será, pois, neste contexto que se desenvolvem as novas relações na primária Fortaleza, e será neste cenário também que os desafios pela cidadania iniciarão seu longo processo por sua consolidação.

Se a cidadania é construída por aqueles que reconhecem seus papeis, direitos e deveres no espaço urbano, a população fortalezense foi desconvidada a integrar e atuar nesse debate. Não é de hoje que a esfera pública aprova leis que afastam os trabalhadores comuns (ou informais) da política. Cabe aqui um universo de reflexões sobre para quem a cidadania foi construída no País, ontem e hoje.

REFERÊNCIAS

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1Doutorado em Direito (Rechtswissenschaft) - pela Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main (1998). Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt/M. Atualmente é Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza. E-mail: barreto@unifor.br

2Doutor em História pela PUC(SP). Professor Adjunto da Universidade de Fortaleza. E-mail: daniel.camurça@unifor.br

3 Os textos escritos por Raimundo de Menezes foram lidos em seus programas de Rádio, no final da década de 1930. Logo depois, transformaram-se em um livro de memórias.

4 “Pedaço de jardim ou de horta, limitado por bordadura” (DICCIONÁRIO PRÁTICO ILLUSTRADO, 1928, 1096).

5 (Arquivo Público do Estado do Ceará-fundo). Ata de Correspondência da Presidência da Câmara Municipal da Fortaleza. Em 6 de setembro de 1884.

6 (APEC-fundo) Ata de Correspondência da Câmara Municipal da Fortaleza. Em sessão de 6 de fevereiro de 1882.

7 (APEC-fundo) Ata de Correspondência da Presidência da Câmara Municipal da Fortaleza. Em 6 de setembro de 1884.

8 (Biblioteca Pública Menezes Pimentel-setor de microfilmagem) A Constituição n-75, ano XIV, de 9 de julho de 1876, extrato diário da parte da policia, p – 01.