UMA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA SOBRE A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO DIREITO DO CONSUMIDOR
A SOCIO-ECONOMIC ANALYSIS ON THE APPLICATION OF THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY IN CONSUMER LAW
Vívian Amaro Czelusniak1
Recebido: 31/01/2018
Aprovado: 03/10/2018
RESUMO: O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil e serve de guia para a interpretação de todo ordenamento jurídico brasileiro. No âmbito do Direito do Consumidor, visa promover a igualdade material entre as partes, na proteção do consumidor em razão da sua vulnerabilidade e, como consequência, proteger a ordem econômica. Contudo, dada a sua complexidade, observa-se que na aplicação do princípio da dignidade humana estão sendo utilizados muitos sentidos e significados, fazendo com que o papel desempenhado por este princípio seja, muitas vezes, impreciso. O objetivo deste trabalho é fazer um levantamento sobre a aplicação do princípio da dignidade humana pelos Tribunais Superiores no âmbito do Direito do Consumidor. A metodologia utilizada foi a bibliográfica e documental, com a exploração de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como resultados se verificou que o STJ prima pela proteção do consumidor no sentido de zelar pela fruição de uma vida digna pelo consumidor, protegendo, por exemplo, a segurança e saúde do consumidor, separando deste contexto casos isolados e de pouca repercussão social. Nesse sentido, o STJ pode contribuir para a construção de um ambiente institucional seguro para as transações entre os fornecedores e consumidores no mercado, reprimindo-se abusos.
Palavras-chave: Dignidade humana. Direito do consumidor. Análise econômica do direito. Direitos fundamentais.
ABSTRACT: The dignity of the human person principle is the foundation of the Federative Republic of Brazil and serves as a guide for the interpretation of all Brazilian legal systems. In the consumer law area, it seeks to promote material equality between the parts, to protect consumer by reason of their vulnerability and, as a consequence, to protect the economic order. However, given its complexity, is observed that in the application of human dignity principle, many purposes and meanings are being used, making the role played by this principle often imprecise. The aim of this article is to make a survey of the principle of human dignity application by the Higher Courts in the comprehensiveness of Consumer Law. The used methodology was the bibliographical and documentary review, with the exploration of decisions issued by the Brazilian Superior Court of Justice (STJ). As a result, the STJ was distinguished by the protection of the consumer in order to ensure the enjoyment of a dignified life by the consumer, protecting, for example, the health and safety of the consumer, separating from this context isolated cases with little social repercussion. In this sense, the STJ can contribute to the construction of a secure institutional environment for transactions between suppliers and consumers in the market, repressing abuses by both parts.
Keywords: Human dignity. Consumer law. Economic analysis of law. Basic rights.
1 INTRODUÇÃO
No âmbito da ordem constitucional econômica, é importante para a iniciativa privada saber como os juízes interpretam os preceitos constitucionais, tendo em vista a necessidade de estabilidade no mercado. Um dos princípios que merecem destaque, atualmente, é o princípio da dignidade humana que informa toda a ordem constitucional brasileira, sendo um importante vetor para as decisões judiciais. Todavia, esse princípio passa ainda por constantes construções em seu conteúdo e entendimento.
No âmbito do Direito do Consumidor, observa-se sua vasta utilização para fundamentação de decisões judiciais. Mas, discrepâncias na interpretação desse princípio podem resultar em prejuízos para a real importância que este princípio possui na ordem constitucional brasileira. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é fazer um levantamento sobre a aplicação do princípio da dignidade humana pelos Tribunais Superiores no âmbito do Direito do Consumidor, para verificar se o Poder Judiciário vem contribuindo para minimizar as repercussões negativas da falta de critério na sua aplicação.
Assim, a metodologia utilizada foi a bibliográfica, com o levantamento das interpretações sobre o conceito de dignidade na doutrina. Ainda, foi utilizado o método de pesquisa documental, com a exploração de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), tendo em vista este órgão tecer decisões sobre a interpretação e aplicação da Lei Federal 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor.
Para tanto, no próximo tópico será apresentado o princípio da dignidade humana e sua pertinência com o Direito do Consumidor, com base em um levantamento bibliográfico sobre o assunto. Após será feita a contextualização socioeconômica da proteção da dignidade humana no âmbito do Direito do Consumidor. No quarto tópico será exposta a pesquisa documental realizada no sítio eletrônico do STJ sobre a aplicação do princípio da dignidade humana no âmbito de casos envolvendo o Direito do Consumidor. No quinto tópico, segue-se com uma discussão, relacionando-se as noções do princípio da dignidade humana no Direito do Consumidor levantadas na doutrina, com a sua aplicação na esfera juseconômica. Encerra-se este estudo com as conclusões.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E O DIREITO DO CONSUMIDOR
Após vários fatos históricos, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial, em que se vivenciou graves violações aos direitos humanos, Constituições de vários países, inclusive a do Brasil, incluíram a dignidade humana como um de seus fundamentos, revivendo-se o antropocentrismo. A dignidade humana integrou os sistemas normativos como um princípio, um valor. Miranda esclarece que a dignidade humana não se confunde com um direito fundamental, mas que estes são inseparáveis da dignidade humana: “ora, a história mostra que, dos direitos fundamentais, é inseparável uma ideia, um valor, um princípio, um meta princípio (como se queira): a dignidade da pessoa humana” (MIRANDA, 2017, p. 76).
Então, o art. 1o. da Constituição Federal, assevera que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988). Nesse contexto, a dignidade humana informa a ordem constitucional brasileira de 1988, conferindo unidade de sentido a todo o sistema, que privilegia certos valores sociais (PIOVESAN, 2017, p. 102). “É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais” (NUNES, 2010, p. 59).
Considerado um conceito polissêmico (MORAES, 2003, p. 105-47), há uma grande dificuldade, entretanto, em se determinar o seu significado. Tendo em vista a sua complexidade, pois integra um conjunto de variados fundamentos e uma série de manifestações (SARLET, 2007, p. 361-88), tem sido aplicado de maneira pouco científica, até mesmo em sistemas normativos, fazendo com que o papel desempenhado por este conceito seja diversificado e impreciso, estando, então, em permanente construção em seu conteúdo (ROCHA, 1999, p. 24).
Dessa forma, há que se ter cuidado para que a aplicação do princípio não seja desvirtuada, sendo “arma retórica” com objetivo de defender interesses de grupos ou indivíduos em detrimento de interesses opostos (WEYNE, 2013, p. 119). Deve-se primar pela “intangibilidade” do princípio da dignidade humana, para que não se desnature frente a relativismos históricos e manipulações que possam ser exercidas por alguma parcela da sociedade, adiando-se o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária (NUNES, 2010, p. 22 e 39).
Uma concepção de dignidade humana prevê ser o princípio um mandamento sobre um “conteúdo do mínimo social”, sendo aplicado com o atendimento das necessidades básicas do ser humano, para que se tenha uma existência digna, podendo este se desenvolver em sociedade e realizar a sua personalidade (SARMENTO, 2016, p. 239). Além de ser algo “inerente à pessoa, pelo simples fato de ser, nascer pessoa humana”, ainda pode ser considerado como algo “dirigido à vida das pessoas, à possibilidade e ao direito que têm as pessoas de viver uma vida digna” (NUNES, 2010, p. 64).
Assim é que a dignidade humana possui várias dimensões (SARLET, 2007): a) dimensão ontológica: vincula-se à concepção da dignidade como uma qualidade intrínseca da pessoa humana, como uma dádiva ou um dom conferido ao ser humano pela divindade ou pela própria natureza; b) dimensão comunicativa e relacional da dignidade da pessoa humana: como o reconhecimento pelo (s) outro (s); c) A dignidade como construção: em uma perspectiva histórico-cultural; d) A dignidade como limite e como tarefa: a dupla dimensão negativa e prestacional da dignidade, entre outras.
Tendo em vista a multiplicidade de sentidos da dignidade humana e considerando que se pretende discorrer sobre o escopo da dignidade humana no âmbito do Direito do Consumidor, neste estudo, optou-se por desenvolver o assunto com base na ideia de Moraes (2003, p. 117) que considera que, na nova concepção antropocentrista, a vulnerabilidade humana deve ser tutelada, onde quer que ela se manifeste. Assim, terão precedência alguns grupos sociais, considerados mais frágeis e dependentes de uma maior proteção, como as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências físicas e mentais, os não-proprietários, os consumidores: “[...] será desumano, isto é, contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (sujeito de direitos) à condição de objeto” (MORAES, 2003, p. 119).
3 CONTEXTO SOCIOECONÔMICO DA DEFESA DA DIGNIDADE HUMANA NO DIREITO DO CONSUMIDOR
Com a observância do princípio da dignidade humana, tem-se que as pessoas serão protegidas em sua dignidade tanto quanto não for possível verificar a ocorrência de uma igualdade de oportunidades. No chamado Estado Democrático e Social de Direito, procura-se fomentar a justiça social, que prima pela “igual dignidade humana”, que será concretizada por meio da proteção aos direitos fundamentais, tanto no âmbito público, como no privado (DRESCH, 2013, p. 152). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que inspirou os diversos ordenamentos jurídicos nacionais a consagrar a dignidade humana como valor fundamental, também assegura direitos na perspectiva da justiça social (ORGANIZAÇÃO..., 2017).
Essa ideia decorre da “solidariedade social: fundamento daquelas lesões que tenham no grupo a sua ocasião de realização, como no caso dos consumidores” (MORAES, 2003, p. 143). Por exemplo, observou-se que várias categorias de sujeitos, como a dos locatários e a dos consumidores, não se encontravam em igualdade de condições com os locadores e com os produtores ou fornecedores; “logo, a eles também não bastava a regra de ouro da igualdade perante a lei. Tornou-se necessário que a lei os protegesse de modo especial, dada a sua peculiar condição na relação jurídica” (MORAES, 2003, p. 144).
A justiça social também é expressamente referida como finalidade da ordem econômica brasileira, prevista no caput do artigo 170 da Constituição Federal (CF): “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (BRASIL, 1988). Nessa perspectiva, a defesa do consumidor está prevista no inciso V, do artigo 170, da CF.
[...] pode-se dizer que em todas as relações privadas nas quais venha a ocorrer um conflito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, a primeira deverá prevalecer, obedecidos, dessa forma, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como valor cardeal do sistema. [...] não há um número fechado (numerus clausus) de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa, sem limites, salvo aqueles postos no seu interesse e no interesse de outras pessoas humanas (MORAES, 2003, p. 145-46).
Assim a defesa do consumidor se dá a partir da proteção da dignidade humana que se encontra em situação de particular vulnerabilidade, visando concretizar o respeito aos seus valores existenciais. A sua aplicação e interpretação pelo Poder Judiciário fundam-se na solidariedade social e na plena realização do indivíduo.
Uma das circunstâncias que acarreta essa vulnerabilidade dos consumidores é a chamada de assimetria informacional: que é um desequilíbrio entre as partes, tanto em termos de teor, quanto na quantidade de informações nas relações econômicas, como em contratos de compra e venda, comuns no mercado de consumo (COOTER; ULEN, 2010). George Akerlof, Michael Spence e Joseph Stiglitz ganharam o Prêmio Nobel de Economia, em 2001, por desenvolverem os fundamentos de teoria dos mercados com informações assimétricas.
Em seu estudo, Akerlof (1970, p. 488-500) analisou o mercado de negociação de carros usados, chamados “lemons” e observou que os compradores podem encontrar no mercado, tanto carros bons, quanto carros ruins, que podem ser novos ou usados. Nesse mercado dos carros usados, observou-se que o comprador, no momento da aquisição, não consegue perceber se o carro é bom ou ruim, só conseguirá ter essa percepção após passar um período de tempo com o veículo comprado. Assim, constata-se que o vendedor sempre possui mais informações a respeito do que vende do que o comprador, como em relação à qualidade do veículo, por exemplo.
Esse desequilíbrio na quantidade e qualidade de informações ocorre em vários tipos de contratos que ocorrem no mercado, podendo ser no âmbito de contratos civis ou mesmo nos de consumo, pois é da natureza das relação de mercado (RIBEIRO; GALESKI JUNIOR, 2009). É certa a “constatação de que os agentes econômicos possuem diferentes graus de acesso às informações relevantes e, também, diferentes possibilidades de processamento dessas informações” (BETTI JUNIOR, 2010, p. 62-3).
No caso dos consumidores, constata-se que essa assimetria informacional é ainda mais proeminente e, assim, para minimizar os efeitos danosos dessa circunstância e induzir contratações mais eficientes, instituições podem ser criadas por meio da intervenção do Estado no mercado, por exemplo, através de leis e regulamentos. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) possui várias diretrizes calcadas na assimetria informacional, como, por exemplo, exigir que os fornecedores divulguem todas as informações pertinentes aos produtos ou serviços aos consumidores, como manuais de instruções, entre outros. Assim, com receio de aplicação de uma sanção pelo descumprimento da lei, os fornecedores informam os consumidores e a assimetria informacional é reduzida (PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 32-3).
Segundo Filomeno (2014, p. 3), o CDC já parte da premissa de que o consumidor é vulnerável, pois, diante do fornecedor, é considerado a parte menos informada; ao contrário, o fornecedor detém todas as informações sobre o produto ou o serviço que presta. Aliado a esta circunstância, o CDC considera que o consumidor não possui quase nenhum poder diante de um conflito que possa surgir entre eles, tendo que, muitas vezes, se submeter às práticas mercadológicas, como no caso dos contratos de adesão.
Nesse sentido, Dresch (2013, p. 162), analisando alguns “privilégios” dados ao consumidor pelo CDC, como os direitos à inversão do ônus probatório, a litigar no foro do seu domicílio, à facilitação da desconsideração da personalidade jurídica, afirma que essas imposições legais derivam de uma necessidade de se dar efetividade “à igual dignidade e garantir as capacidades humanas básicas que permitam a autorrealização do ser humano”. “[...] A defesa do consumidor, à luz do inciso XXXII do art. 5o do Texto Constitucional, passou a ser direito do cidadão e dever do Estado” (ALMEIDA, 2009, p. 75), condições estas derivadas da justiça social e compatibilizadas com a ordem econômica constitucional.
Filomeno (2014, p. 3) ressalta que o CDC não é paternalista, pois visa a harmonia entre fornecedores e consumidores, já que é inegável a interdependência entre eles, até mesmo para o desenvolvimento econômico e tecnológico: “[...] pode-se afirmar, com absoluta certeza, que foi ele (o CDC) um dos grandes responsáveis pela introdução de novos métodos de qualidade na atividade econômica brasileira, sem o que lhe seria impossível competir com outros países”.
Uma vez estabelecida à afetação dos mercados pela informação imperfeita, vale notar como, no âmbito das relações consumeristas, as vicissitudes das assimetrias informativas tendem a desestabilizar ainda mais uma relação naturalmente desequilibrada, decorrendo daí a necessidade de instituições capazes de amenizar os efeitos ineficientes e socialmente indesejados das informações imperfeitas inerentes às relações de consumo. É neste cenário que os arranjos políticos institucionais possuem o papel fulcral de mitigar, ou evitar, as consequências econômicas ineficientes e moralmente condenáveis da “mão invisível” dos mercados imperfeitos, tendo, neste cenário, o Direito do Consumidor o papel fulcral de, através da proteção do vulnerável, preservar o equilíbrio do mercado, visando a sua própria sustentação e a concreção do interesse público (NASCIMENTO, 2015, p. 385-86).
Ressalta-se que a primeira vez que o princípio da dignidade humana foi introduzido em um texto constitucional brasileiro foi em 1934, no âmbito dos princípios da ordem econômica e social, em virtude da influência da Constituição de Weimar, de 1919; “[...] indicando que o constituinte da época atribuiu à dignidade uma função de fundamento, mas também de limite da liberdade econômica” (SARLET, 2017, p. 261). Assim, a liberdade econômica deve estar atrelada à ética empresarial, para que o mercado se conduza conforme os ditames de sustentabilidade social, primando-se pelo bem-estar humano (EMERY, 2013).
[...] o problema da delimitação do sentido de uma existência digna deve ser vislumbrado não somente no campo semântico, senão também no plano pragmático do uso da linguagem jurídica, no âmbito concreto das lides ou conflitos de interesse. Isso porque o exame da dialética concreta de interpretações e argumentações que movimenta o processo jurisdicional possibilita delimitar, com alguma razoabilidade, o consenso momentâneo e pontual sobre o significado conferido por uma dada comunidade jurídica, por meio dos tribunais, ao cânone ético-jurídico da dignidade da pessoa humana (SOARES, 2010, p. 196).
Assim, o princípio da dignidade humana “identifica padrões de comportamento a serem observados nas relações de consumo, [...] tutelada a partir da fixação pela magistratura de standards de comportamento nos casos concretos” (TEPEDINO, 2011, p. 71). Brito (2012) ressalta que no escopo do Direito Contratual contemporâneo, seja de natureza civil, consumo, busca-se o equilíbrio entre as partes contratantes, no intuito do desenvolvimento da pessoa e do seu bem-estar. Na aplicação do princípio, portanto, deve-se privilegiar uma interpretação da dignidade humana como limite à atuação da liberdade econômica, exigindo uma atuação ética dos fornecedores de produtos e serviços, protegendo a existência digna do consumidor no âmbito das relações mercadológicas.
4 LEVANTAMENTO DE DECISÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RELACIONADAS À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO DIREITO DO CONSUMIDOR
Buscando-se verificar a aplicação e a interpretação do princípio da dignidade humana no Código de Defesa do Consumidor (CDC) (BRASIL, 1990), foi realizada uma pesquisa documental, fazendo-se um levantamento de decisões exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema deste estudo. Esse levantamento se mostra importante para que se verifique a interpretação que se está realizando pelos Tribunais Superiores de conceitos que se mostram, ainda, um tanto incompreendidos por parte da comunidade jurídica. Conforme afirma Pérez Luño (2012): “a análise do comportamento judicial aparece como condição necessária para transladar da penumbra e do mistério à transparência, e a claridade, o significado do sistema jurídico em seu conjunto”.
Foram utilizadas, portanto, as expressões “dignidade” e “consumidor” para a realização de busca de jurisprudência no sítio eletrônico do STJ. Nessa busca foram encontrados: 1 (hum) acórdão repetitivo, 106 (cento e seis) acórdãos, 8308 (oito mil, trezentos e oito) decisões monocráticas e 17 (dezessete) informativos de jurisprudência. Dado este universo de decisões, optou-se neste estudo por analisar o conteúdo do acórdão repetitivo e os 17 (dezessete) informativos de jurisprudência, que se entende serem fontes propícias para que se busque os métodos e formas com que o STJ vem aplicando o princípio da dignidade humana no Direito do Consumo, pois o “informativo é um produto quinzenal que apresenta as novidades nas teses firmadas pelo STJ, com grande repercussão no mundo jurídico” (SUPERIOR..., 2017a).
O acórdão repetitivo dizia respeito a uma decisão em Recurso Especial, n. 1.102.578 – MG (2008/0266102-6), em que foi recorrente o Instituto Nacional de Metrologia Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO) e recorrido Confecções Dora Ltda (SUPERIOR..., 2009a). Discutia-se no âmbito deste recurso a legalidade de auto de infração exarado pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (CONMETRO) ao recorrido, já que se baseou em normas baixadas por este órgão e não pela Lei 5.966/1973 (BRASIL, 1973) e Lei 9.933/1999 (BRASIL, 1999), que o recorrido entendia aplicadas ao caso. A relatora, Ministra Eliana Calmon, ampliou o escopo da análise do caso, passando a abordar também as notificações por violação aos atos normativos expedidos pelo INMETRO.
Entendeu a relatora que o CONMETRO e o INMETRO possuem competência normativa, conferida pela Lei 9.933/1999 (BRASIL, 1999). Além disso, discorreu sobre a expressa previsão em lei para a imposição das multas por atos administrativos baixados por estes dois órgãos. No fundamento de sua decisão citou o princípio da dignidade humana como segue: “Essa sistemática normativa [...] tem como objetivo maior o respeito à dignidade humana e a harmonia dos interesses envolvidos nas relações de consumo, dando aplicabilidade a ratio do Código de Defesa do Consumidor, consoante rege o caput do seu art. 4º [...]”. Destaca-se a necessidade de se resguardar o direito dos consumidores quanto à qualidade dos produtos e serviços disponibilizados no mercado.
Dos informativos de jurisprudência apenas 1 (um) não tratava especificadamente da dignidade humana. Assim, foram analisados 16 (dezesseis) informativos de jurisprudência, ao invés dos 17 (dezessete) encontrados. Foi formulada a Tabela 1 para a apresentação dos informativos, em que consta, resumidamente, o número do informativo, a data, o assunto e a fundamentação utilizada para a decisão.
Tabela 1 – Informativos do STJ sobre dignidade humana e consumidor
No. |
Data |
Conteúdo |
195 |
8 a 12 dez. 2003 |
Energia elétrica. Corte. Residência. “A Seção, por maioria, entendeu que é permitido à concessionária de energia elétrica interromper o fornecimento após prévia notificação do consumidor. Os votos vencidos entendiam que este ato afronta a dignidade humana, pois há que se distinguir os inadimplentes da pessoa em situação de miserabilidade” (SUPERIOR..., 2003). |
199 |
16 a 20 fev. 2004 |
CDC. Compra. Veículo novo. Defeito. “Se a descrição dos fatos para justificar o pedido de danos morais está no âmbito de dissabores, sem abalo à honra e ausente situação que produza no consumidor humilhação ou sofrimento na esfera de sua dignidade, entende-se que o dano moral não é pertinente” (SUPERIOR..., 2004). |
371 |
6 a 10 out. 2008 |
Danos Morais. Plano. Saúde. Recusa. Cobertura. “Mesmo declarando a nulidade da cláusula contratual que permitia a imediata suspensão do atendimento a partir do primeiro dia de mora, o acórdão entendeu que o ato da não-autorização, por si só, não torna evidente a concretização dos danos morais. É necessária, portanto, a comprovação de ofensa à dignidade do apelante, ora recorrente, ou de qualquer situação constrangedora, o que não sucedera no caso” (SUPERIOR..., 2008). |
420 |
14 a 18 dez. 2009 |
Cláusula. Exclusividade. Cooperativa médica. Invalidade. “Mesmo antes da Lei n. 9.656/1998, é inválida a cláusula inserida em estatuto de cooperativa de trabalho médico que impõe exclusividade aos médicos associados, em razão do respeito à dignidade da pessoa e seu direito à saúde, bem como à garantia de livre concorrência, à defesa do consumidor, aos valores sociais do trabalho e à livre iniciativa” (SUPERIOR..., 2009b). |
426 |
8 a 12 mar. 2010 |
Dano moral. Inseto. Refrigerante. “O dano moral não é pertinente pela simples aquisição de refrigerante com inseto, sem que seu conteúdo tenha sido ingerido, por se encontrar no âmbito dos dissabores da sociedade de consumo, sem abalo à honra, ausente situação que produza no consumidor humilhação ou represente sofrimento em sua dignidade” (SUPERIOR..., 2010). |
463 |
14 a 18 fev. 2011 |
Dano moral. Cartão megabônus. “Mesmo constatado causar certo incômodo ao contratante, o envio de cartão não repercute de forma significativa na esfera subjetiva do consumidor. Também assim, a tentativa de utilizar o cartão como se fosse de crédito não vulnera a dignidade do consumidor, mostrando-se apenas como mero dissabor” (SUPERIOR..., 2011). |
505 |
20 set. a 3 out. 2012 |
Direito civil. Responsabilidade civil. Falha no serviço postal contratado. “É cabível a indenização por danos morais ao advogado que, em razão da entrega tardia da petição ao tribunal pela prestadora de serviços contratada, teve o recurso considerado intempestivo. A comprovação da gravidade do ato ilícito gera, ipso facto, o dever de indenizar em razão de uma presunção natural, que decorre da experiência comum, de que houve um abalo significativo à dignidade da pessoa” (SUPERIOR..., 2012). |
537 |
10 abr. 2014 |
Direito do consumidor. Dano moral decorrente da presença de corpo estranho em alimento. “A proteção da segurança e da saúde do consumidor tem, inegavelmente, cunho constitucional e de direito fundamental, na medida em que esses valores decorrem da especial proteção conferida à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). Cabe ressaltar que o dano moral não mais se restringe à dor, à tristeza e ao sofrimento, estendendo sua tutela a todos os bens personalíssimos” (SUPERIOR..., 2014). |
553 |
11 fev. 2015 |
Direito do consumidor. Inocorrência de dano moral pela simples presença de corpo estranho em alimento. “A simples aquisição de refrigerante contendo inseto no interior da embalagem, sem que haja a ingestão do produto, não é circunstância apta, por si só, a provocar dano moral indenizável. Inexiste um sistemático defeito de segurança capaz de colocar em risco a incolumidade da sociedade de consumo, a culminar no desrespeito à dignidade da pessoa humana, no desprezo à saúde pública e no descaso com a segurança alimentar” (SUPERIOR..., 2015a) |
553 |
11 fev. 2015 |
Direito administrativo. Responsabilidade civil do estado em razão da existência de cadáver em decomposição em reservatório de água. “É inegável, diante de tal fato, a ocorrência de afronta à dignidade da pessoa humana, consistente no asco, angústia, humilhação, impotência da pessoa que toma ciência que consumiu água contaminada por cadáver em avançado estágio de decomposição. Sentimentos que não podem ser confundidos com o mero dissabor cotidiano” (SUPERIOR..., 2015a). |
555 |
11 mar. 2015 |
Direito do consumidor. Cobrança por emissão de boleto bancário. “Observe-se que a ideia de vulnerabilidade está justamente associada à debilidade de um dos agentes da relação de mercado, no caso, o consumidor, cuja dignidade merece ser sempre preservada. As cláusulas são consideradas ilícitas pela presença de um abuso de direito contratual a partir de condutas eivadas de má-fé e manifesto dirigismo contratual, situação não vislumbrada no caso em análise, em que se respeitada a livre pactuação dos custos, mantidos o equilíbrio contratual, a proporcionalidade do acréscimo cobrado e a boa-fé objetiva do fornecedor” (SUPERIOR..., 2015b). |
559 |
6 a 16 abr. 2015 |
Direito civil e do consumidor. Dever de utilização do sistema Braille por instituições financeiras. “Assinala-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo impôs aos Estados signatários a obrigação de assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas portadoras de deficiência, conferindo-lhes tratamento materialmente igualitário (diferenciado na proporção de sua desigualdade) e, portanto, não discriminatório, acessibilidade física e de comunicação e informação, inclusão social, autonomia e independência (na medida do possível, naturalmente), e liberdade para fazer suas próprias escolhas, tudo a viabilizar a consecução do princípio maior da dignidade da pessoa humana” (SUPERIOR..., 2015c). |
571 |
15 a 27 out. 2015 |
Direito do consumidor e processual civil. Interesse de agir em ação de cancelamento de diversas inscrições em cadastro negativo de proteção ao crédito. “Eventuais restrições ao nome devem ser realizadas com temperamentos e em estrita observância à ordem jurídica, principalmente diante da tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, imagem e privacidade” (SUPERIOR..., 2015d). |
573 |
12 a 25 nov. 2015 |
Direito constitucional e processual civil. Legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública em defesa de juridicamente necessitados. “No caso, além do direito tutelado ser fundamental (direito à saúde), o grupo de consumidores potencialmente lesado é formado por idosos, cuja condição de vulnerabilidade já é reconhecida na própria Constituição Federal, a qual dispõe no art. 230 que: ‘A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida’” (SUPERIOR..., 2015e). |
581 |
14 a 28 abr. 2016 |
Direito civil e do consumidor. Possibilidade de o dependente assumir a titularidade de plano de saúde após o período de remissão. “Essa orientação foi fundada especialmente nos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da proteção da segurança jurídica e da proteção à entidade familiar, conjugados com o previsto no art. 3º, § 1º, da Resolução Normativa n. 195/2009 da ANS, com o fim de evitar o desamparo dos dependentes inscritos do titular falecido quanto à assistência médica e hospitalar” (SUPERIOR..., 2016). |
612 |
25 out. 2017 |
Prestações de mútuo firmado com instituição financeira. Desconto em conta-corrente e desconto em folha. Hipóteses distintas. Aplicação, por analogia, da limitação legal ao empréstimo consignado ao mero desconto em conta-corrente, superveniente ao recebimento da remuneração. Inviabilidade. Dirigismo contratual sem supedâneo legal. Impossibilidade. “A norma que fixa a limitação do desconto em folha é salutar, possibilitando ao consumidor que tome empréstimos, obtendo condições e prazos mais vantajosos, em decorrência da maior segurança propiciada ao financiador - desde que preservado o mínimo existencial - em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana” (SUPERIOR..., 2017b). |
Fonte: autoria própria.
Dessa forma, verifica-se que o princípio da dignidade humana é referido várias vezes em fundamentações de decisões do STJ sobre casos envolvendo o Direito do Consumidor. Sarlet já identificou que este princípio está amplamente presente no processo decisório judicial, inclusive nos Tribunais Superiores (SARLET, 2017), sendo “simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral (portanto, de todos e de cada um), condição que também aponta para uma parcela e conexa dimensão defensiva (negativa) ou prestacional (positiva) da dignidade” (SARLET, 2017, p. 266). Contudo, como já mencionado anteriormente, é necessário que sejam estabelecidos critérios ou “contornos de uma objetividade possível que permita ao princípio transitar de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais” (BARROSO, 2010, p. 335).
5 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE NO ÂMBITO DO MERCADO DE CONSUMO
No acórdão repetitivo em matéria consumerista citado no tópico anterior, percebe-se que o princípio da dignidade humana foi invocado pela ministra Eliana Calmon como uma baliza para a atuação dos fornecedores de produtos e serviços no mercado, sendo os órgãos governamentais considerados responsáveis por proteger os consumidores de atos que possam infringir a dignidade humana, como por exemplo, o consumo de produtos de baixa qualidade. A intensão é permitir um equilíbrio entre o consumidor, que possui vulnerabilidade técnica, e o fornecedor dos produtos e serviços. Assim, órgãos governamentais, como o INMETRO, podem atuar de modo a permitir uma fiscalização mais eficiente dos bens de consumo disponibilizados no mercado, o que não seria possível ser realizado pelo próprio consumidor.
Vinholis, Toledo e Souza Filho (2009) destacam que a “assimetria informacional no mercado de consumo pode fazer com que produtos com diferentes qualidades sejam vendidos pelo mesmo preço, pois é difícil realizar essa diferenciação ex ante à aquisição do produto.” Isso tem como consequência premiar aqueles que conseguem obter um produto ao menor custo possível, mesmo sacrificando a qualidade do produto final. Nesse sentido, sistemas governamentais de gerenciamento da qualidade dos produtos podem diminuir a assimetria informacional no mercado e propiciar a proteção da dignidade humana dos consumidores, em termos de saúde e segurança.
Nos informativos descritos na Tabela 1, algumas decisões também primaram por proteger a segurança e saúde do consumidor que adquiriu produtos alimentícios com presença de corpos estranhos (Informativos 426, 537, 553). Nesses casos, presenciam-se vícios de qualidade nos bens de consumo. Todavia, para que a presença desses vícios seja considerada atentatória à dignidade humana, não basta a sua mera existência, é necessário que venha abalar a confiança do mercado de consumo desses determinados produtos. Por isso, observa-se nesses casos, uma preocupação do STJ em não se banalizar a concessão de indenização, pois se visa proteger a saúde pública como um todo, não sendo concedida indenização, em alguns casos isolados, em que houve um erro em algum produto específico, pois não há motivo que coloque em risco a saúde de todo o universo de consumidores. Acertadamente, entretanto, foi, por exemplo, a concessão de indenização como medida de punição no caso do reservatório de água, em que é nítido o dano moral e o perigo à lesão à saúde do consumidor (Informativo 553). Nota-se um defeito no produto capaz de gerar risco à integridade física dos consumidores que, por ventura, ingerissem a água contaminada.
Assim se nota, também em outros casos, uma preocupação do STJ em zelar pela fruição de uma vida digna pelo consumidor e não relacionar casos isolados e de pouca repercussão social com o princípio da dignidade humana. Outras indenizações negadas foram a da compra de veículo com defeito (Informativo 199), a da recusa de cobertura do plano de saúde (Informativo 371), a do recebimento de cartão não solicitado (Informativo 463), a de cobrança pelo boleto bancário (Informativo 555) e a do desconto em conta-corrente de prestação de mútuo com instituição financeira (Informativo 612). Nesses casos, não há abalo ao princípio da dignidade humana, uma vez que não geraram um empecilho à fruição de uma vida digna dos consumidores.
Outros casos de grande repercussão social possuem um tratamento diferenciado, por exemplo, o caso da exclusividade em cooperativa médica (Informativo 420), o do dever de utilização do sistema Braille por instituições financeiras (Informativo 559), do cancelamento de diversas inscrições em cadastro negativo de proteção ao crédito (Informativo 571), da legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública em defesa de juridicamente necessitados (Informativo 573) e o da possibilidade do dependente assumir a titularidade de plano de saúde após o período de remissão (Informativo 581). Nesses casos, sim, o fundamento e aplicação do princípio da dignidade humana visa proteger grupos de pessoas com diferentes oportunidades, pessoas vulneráveis em suas relações no mercado, como as pessoas com deficiência.
A forma como o STJ analisa o princípio nesses casos se coaduna com as expectativas da teoria econômica, como visto a partir da teoria exposta anteriormente, que destaca a ocorrência desta vulnerabilidade no âmbito de relações de mercado:
Com a devida vênia, a expansão do direito do consumidor, e neste caso da garantia do acesso do consumidor à informação, não visa a concreção da dignidade humana do consumidor tão somente, mas expande-se na proporção do desenvolvimento do mercado de consumo global. Ou seja, seguindo a lógica do próprio comportamento mercadológico estratégico, o resguardo da capacidade econômica e da proteção do consumidor vulnerável constitui-se condição de desenvolvimento do próprio mercado de consumo, não há oferta sem demanda, não há fornecedor sem consumidor, logo o conjunto de regras jurídicas protetivas do consumidor não se opõe a lógica do mercado, nem aos interesses do poder econômico (NASCIMENTO, 2015, p. 393).
A proteção do mercado de consumo nesse cenário se justifica, pois é necessário conservar a capacidade do consumidor de distinguir os melhores fornecedores, sob pena da ocorrência do que se chama “seleção adversa”, ou ainda do “risco moral”: “enquanto em modelos de seleção adversa, há informações imperfeitas sobre as características do que está sendo comprado ou vendido no mercado (trabalho, empréstimos ou produtos), em modelos de risco moral há informações imperfeitas sobre a ação que o indivíduo compromete” (STIGLITZ, 1985, p. 23).
A seleção adversa ocorre quando, considerando o desconhecimento, por uma das partes, das características dos potenciais parceiros e as intenções desses, os fornecedores oferecem condições medianas dos bens de consumo no mercado, afastando os melhores fornecedores, por tornarem produtos bons muito mais caros, por exemplo. Assim, condições aceitáveis podem ser propostas apenas por fornecedores que seriam os últimos escolhidos numa contratação em condições normais (ARAÚJO, 2007, p. 285), observando uma baixa na qualidade dos produtos e serviços ofertados como um todo.
Outra situação é a do risco moral, que consiste no “uso estratégico de informação privativa por parte de um agente, na medida em que os objetivos visados com o contrato dependam crucialmente da conduta desse agente e ele possa manipular as condições em que cumpre os seus deveres contratuais [...]” (ARAÚJO, 2007, p. 287). Por exemplo, o fornecedor sabendo da falta de informação da outra parte, impõe a venda de produtos de pouca qualidade, com defeitos sucessivos. Uma solução legal para impedir o risco moral pode ser a imposição legal de uma garantia dos produtos fornecidos pelo fabricante. Contudo, se a garantia for excessiva, pode-se inverter a situação: o consumidor pode utilizar mal o produto para se beneficiar da garantia.
Essas circunstâncias da seleção adversa ou do risco moral são exemplos de como o comportamento dos agentes, se prevalecendo de situações de assimetria informacional da outra parte, podem influir no bom funcionamento dos mercados. Nesses casos, pode-se constatar um aumento dos “custos gerais da desonestidade de certos agentes econômicos” (TOKARS, 2011, p. 94). Pois, “a partir do momento em que, no plano institucional, não se inibe eficientemente o comportamento desonesto, o mercado passa a trabalhar com a perspectiva da desonestidade, o que afeta o sistema de preços e a própria gama de realização de negócios” (TOKARS, 2011, p. 94).
Nesse sentido, o estabelecimento de regras jurídicas que sejam promotoras de incentivos para o comportamento ético dos agentes, tanto dos fornecedores, quanto dos consumidores, no mercado, aliado à boa aplicação e interpretação dessas regras pelo Poder Judiciário, são fundamentais para bons efeitos sociais. Assim, na aplicação do princípio da dignidade humana, dentro de uma lógica mercadológica, deve-se observar o conjunto de implicações comportamentais que a decisão terá na atuação dos agentes, devendo-se coibir os abusos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Recorrentemente, o STJ é chamado para analisar casos relacionados ao Direito do Consumidor, em que se alega como fundamento violação ao princípio da dignidade humana. Assim, na aplicação do princípio ao caso concreto, o STJ deve oferecer uma coerência na interpretação, o que parece ocorrer, verificando-se a análise das decisões deste órgão, ainda que não muito vasta, realizada neste estudo. No âmbito do STJ, as interpretações convergem no sentido de se garantir a proteção do grupo de consumidores contra práticas que impactem na ordem socioeconômica como um todo.
A vulnerabilidade dos consumidores no âmbito mercadológico é um fato, considerado também nos estudos econômicos. Instituições são criadas e existem para minimizar os efeitos danosos do desiquilíbrio normal que há entre os fornecedores e os consumidores no mercado. Aliado às normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da dignidade humana visa abarcar os casos em que há uma violação de grande repercussão social, protegendo-se este grupo de pessoas vulneráveis de transgressões no exercício de uma vida digna.
Assim, o Poder Judiciário em seu desempenho na análise de casos de infrações aos direitos dos consumidores, atuando com segurança, estabilidade e previsibilidade na interpretação do princípio da dignidade humana, pode contribuir para um mercado de consumo que privilegie transações eficientes entre os fornecedores e consumidores, evitando-se os abusos de ambas as partes. Estabelecendo os padrões de comportamento que os fornecedores deverão manter para evitar violações à dignidade humana do consumidor, o Poder Judiciário tem papel fundamental, para a proteção do mercado de consumo, tornando-o mais atrativo ao desenvolvimento de práticas éticas.
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1Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, com estágio de Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil; Mestra em Tecnologia ênfase em Propriedade Intelectual pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. É Advogada na Pauls Advocacia, Professora do Ensino Superior no Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba e Coordenadora de equipe do Instituto Brasileiro de Pesquisas Aplicadas em Prevenção e Mediação de Conflitos Empresariais – IBCEMP. E-mail: vivian.amaro@gmail.com