LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E COMISSÃO DE ÉTICA: COMO ESSES DISCURSOS SE CRUZAM?
ACCESS TO INFORMATION LAW AND ETHICS COMMITTEE: HOW THESE DISCOURSES ARE CROSSED?
Murilo Borsio Bataglia1
Ana Claudia Farranha Santana2
Recebido: 13/11/2017
Aprovado: 11/07/2018
RESUMO: Diante de casos de agentes que confundem interesses públicos e privados, surge a necessidade de enfrentamentos a essa confusão. Possuindo esse intuito, a efetivação do direito de acesso à informação destaca-se como um mecanismo que contribui para tanto. Também há a atuação de instituições, dentre elas, as comissões de ética. Partindo dessa justificativa, este trabalho tem por objetivo verificar como as comissões de ética do Executivo Federal se apropriam dos princípios e medidas da Lei de Acesso à Informação - LAI (Lei n. 12.527/11). Metodologicamente, faz-se revisão bibliográfica acerca do conceito de direito à informação, relacionando-o à democracia, accountability, liberdade de expressão, observando-se o contexto internacional (convenções e outras leis de acesso), para se adentrar na LAI do Brasil e seus princípios. Em seguida, mune-se da técnica da análise de contexto institucional para explicar a criação das comissões de ética no Brasil, sua evolução e sistema de funcionamento. Possuindo essa base, busca-se responder a questão central (i) analisando-se o site da CEP (verificando o cumprimento da LAI em transparência ativa); (ii) enumerando-se alguns casos de pedido de acesso (transparência passiva) direcionados às comissões e; (iii) entrevistando servidor da Comissão de Ética Pública da Presidência. Como resultados, percebe-se esse cruzamento de discursos ao constatar que o site da CEP cumpre a LAI, pedidos são respondidos, CEP possui o dever de punir servidores e de, sendo parte da administração pública, divulgar suas informações, obedecidas as regras de sigilo enquanto investigações não se concluem.
Palavras-chave: Direito à informação. Transparência. Comissões de ética.
ABSTRACT: It is needed to confront practices of agents that confuse public and private interests.With this intention, the effectiveness of the right of access to information is highlighted as a mechanism that contributes to that. There are also institutions, among them, ethics committees. With this reason, this study aims to verify how the ethics committees of the Federal Executive are appropriating the principles and measures of the Access to Information Law - LAI (Law 12.527/11). For this, methodologically, it is made a bibliographical review about the concept of the right to information, relating it to democracy, accountability, freedom of expression, observing the international context (conventions and other access laws), to discuss Brazil’s LAI and its principles. Next, it relies on the technique of analysis of institutional context to explain the creation of ethics committees in Brazil, its evolution and operating. With this basis, this study seeks to answer the main question (i) by analyzing the CEP website (about active transparency); (ii) listing some cases of request for access (passive transparency) for commissions and; (iii) interviewing one server of the Public Ethics Committee of the Presidency. As a result, this study sees the crossing of speeches when it finds that the CEP website complies with the LAI, requests are answered, CEP has the duty to punish servers and, being part of the public administration, also to disclose its information, obeying the rules of confidentiality while investigations are not concluded.
Keywords: Right to information. Transparency. Ethics committees.
1 INTRODUÇÃO
A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011), base de análise deste trabalho, consiste em marco normativo de suma relevância em termos de transparência de dados públicos do governo brasileiro. Esta lei trata do direito de acesso à informação, interpretado neste trabalho como um direito humano, que se baseia na máxima divulgação, (ou seja, que toda informação seja acessível, ressalvadas exceções específicas) (MENDEL, 2009). Dessa maneira, ele “[...] se presta a munir o cidadão de informações detidas pelo Estado, para que seja possível, [...] o controle social.” (BRASIL, 2016, p. 52).
Este direito, por sua vez, pode se efetivar por meio da transparência que permite ao cidadão ter conhecimento acerca do funcionamento do Estado, reduzindo assimetrias informacionais e possibilitando maior controle em relação à ação do governante. Tal conceito está relacionado ao regime democrático em virtude de este prezar pela liberdade de expressão, pelo controle social dos atos dos representantes, pela prestação de contas destes perante a sociedade e pela possibilidade de participação social. Nesse mesmo regime, a informação e sua circulação revelam-se importantes para “nivelar” o conhecimento de representante e representado, e para que este exerça a soberania que lhe é conferida constitucionalmente.
No entanto, pode ocorrer que, nas democracias, haja uma assimetria informacional desfavorável aos representados. Sabendo disso, e também diante de casos de malversação e de confusões de interesses públicos e privados, surge a necessidade de seu enfrentamento e controle, o que se dá tanto pela difusão de informação quando por meio da combinação de determinados atores institucionais.
Assim, instituições que têm seu papel de relevância para esse combate são as comissões de ética – aqui analisadas aquelas do Poder Executivo Federal. E, além de seu trabalho de apuração de denúncias relacionadas a agentes suspeitos de favorecimentos ilegais, e de fiscalizar o cumprimento do código de conduta, elas mesmas, por integrarem a própria administração pública, também estão submetidas à necessidade de divulgarem informações e de serem transparentes.
Com isso, diante dessa contextualização e justificativa de abordagem, chega-se aos questionamentos centrais deste trabalho: como as comissões de ética, no âmbito do Poder Executivo Federal, se apropriam dos princípios e medidas apontadas pela Lei de Acesso à Informação? Como ocorre a transparência ativa da Comissão de Ética da Presidência - CEP? Qual seu funcionamento? Este artigo, portanto, estrutura-se de modo a buscar responder essas perguntas, inicialmente tendo por objetivo relacionar as categorias “Lei de Acesso à Informação” (envolvendo os princípios e direitos dela decorrentes) e “Comissões de Ética”.
Nesse intuito, metodologicamente, mune-se da técnica de revisão bibliográfica para, de início, definir conceitos como “direito de acesso à informação” como um direito fundamental presente nas constituições e em tratados internacionais (ONU e OEA). Aliam-se a tal conceito os efeitos que a informação implica ao ser considerada como instrumento e também produto da democracia representativa: envolve mecanismos de participação e de cidadania, controle de corrupção, fiscalização dos representantes e liberdade de expressão.
Uma vez feitas essas considerações, parte-se para leis de acesso de outros países que são referência e influenciaram de certa forma a LAI brasileira. Então, dá-se enfoque à realidade brasileira, por meio da mencionada Lei n. 12.527/2011 e os princípios que sustenta (com base em produções de Toby Mendel e da ONG Artigo 19). Por conseguinte, para depois relacionar tanto a LAI quanto as comissões de ética, explica-se o contexto de criação das Comissões de Ética do Poder Executivo Federal até a formação de um sistema nacional, coordenado pela Comissão de Ética Pública da Presidência (CEP) - para que se tenha conhecimento de sua estrutura e funcionamento (o que contribui para responder a questão central deste trabalho).
Logo, adentrando na resposta de como essas comissões e a lei de acesso à informação (a partir de seus princípios de transparência e direito de acesso) convergem, desenvolve-se esta pesquisa explorando o tema com elementos empíricos (mas sem pretensões de uma generalidade empírica). Assim, consiste em uma exploração inicial do problema apresentado, seguindo algumas ações: (i) analisando-se o site da CEP (verificando o cumprimento da LAI em transparência ativa); (ii) enumerando-se alguns casos de pedido de acesso (transparência passiva) direcionados às comissões (ou sobre elas requeridos) e; (iii) munindo-se de técnica de entrevista de servidor da Comissão de Ética Pública da Presidência que, de modo categórico, relaciona a questão da ética (cujo papel é prevenir atos escusos, advertindo servidores ou autoridades, e até recomendando exonerações) com os princípios de acesso à informação.
2 DIREITO À INFORMAÇÃO
Nesta seção pretende-se discorrer sobre o direito à informação como um direito fundamental, e, posteriormente, adentrar na legislação brasileira de acesso à informação, com destaque para alguns de seus dispositivos e princípios.
2.1 Direito fundamental à informação
O direito à informação, entendido neste trabalhado como um direito humano, corresponde a uma preocupação de diversos organismos e atores. Assim, nessa seção, pretende-se: (i) elucidar o conceito de direito de acesso à informação e seu tratamento como direito fundamental, (ii) as áreas com que se relaciona, e (iii) alguns documentos internacionais em que está compreendido.
Antes de adentrar na abordagem de que direito à informação é entendido como um direito fundamental, é importante contextualizar alguns termos: a) informação, b) regime de informação e c) direito à informação. Assim, “informação” corresponde, por exemplo, ao ato de registro escrito, que preserva os saberes de forma registrada, gerando uma memória social em documentos (ainda que de modo seletivo) (LIMA et al, 2014). Já “regime de informação” compreende o conjunto de regras jurídicas formais, ou, ainda, o modo de produção informacional vigente: diz respeito aos sujeitos, regras, autoridades informacionais, meios e recursos a partir dos quais a informação é produzida, organizada e distribuída em rede partindo de diferentes produtores em direção a diferentes destinatários (GÓMEZ, 2003; LIMA et al, 2014).
Em se tratando de “direito à informação”, é notória sua correlação com conceitos mais amplos, como o de liberdade de expressão e sua inserção no “conceito guarda-chuva” de direito à comunicação. Pode ser definido, em termos mais específicos, como a forma de obter conhecimento sobre o Estado, direito individual ou coletivo de acesso à informação pública, ou, ainda, instrumento para cidadãos exercerem controle sobre o Poder Público (CINTRA, 2016; LIMA et al, 2014). Nesse sentido, Marco Cepik traça suas principais características:
[...] um leque relativamente amplo de princípios legais que visam assegurar que qualquer pessoa ou organização tenha acesso a dados sobre si mesma que tenham sido coletados e estejam armazenados em arquivos e bancos de dados governamentais e privados, bem como o acesso a qualquer informação sobre o próprio governo, a administração pública e o país, ressalvados o direito à privacidade, o sigilo comercial e os segredos governamentais previstos em lei (CEPIK, 2000. p. 46).
Em termos históricos, por conseguinte, destaca-se a crescente importância desse tema no pós Segunda Guerra Mundial. Durante os períodos de guerra, prezava-se pela propaganda incessante e pelo indispensável segredo nas lutas entre ideologias e Estados. Terminados os conflitos mundiais, viu-se na circulação de informação a solução para anular “[...] o segredo como fator de temor e desconfiança no campo internacional, e para que o poder da propaganda manipulatória pudesse ser enfraquecido” (LIMA et al, 2014, p. 55). A partir de então, inúmeros foram os diplomas nacionais e internacionais que passaram a abordar a temática, relacionando-a a um direito fundamental.3
Somado a isso, o contexto do pós-guerra pode ser associado a uma expansão do regime democrático nos diversos países. E, em se tratando de democracia, a informação e sua circulação se fazem de extrema importância justamente em função da representatividade e da participação social: representantes eleitos têm o dever de prestar contas de seus atos (accountability). Uma madura participação social em decisões e o controle social contra atos ilícitos passam pelo conjunto de informações que cidadãos têm acesso.
Por esses motivos, consolida-se a ideia de que a informação é o oxigênio da democracia (Organização Não Governamental Artigo 19). Toby Mendel retrata tais aspectos da seguinte maneira:
A informação é um fundamento essencial da democracia em todos os níveis. Em sentido mais genérico, a democracia gira em torno da capacidade dos indivíduos de participar de modo efetivo da tomada de decisões que os afeta. As sociedades democráticas dispõem de ampla gama de mecanismos participativos, desde eleições regulares até órgãos de vigilância mantidos pelos cidadãos, por exemplo, nas áreas de educação pública e serviços de saúde, e até mecanismos para a apreciação de projetos de políticas, leis ou programas de desenvolvimento. A participação efetiva em todos esses níveis depende, de maneira razoavelmente óbvia, do acesso à informação, inclusive de informações mantidas por órgãos públicos (MENDEL, 2009, p. 04).
No entanto, apesar de o regime democrático ter essa característica, pode acontecer que tal “promessa” não se cumpra, a ponto de haver a separação entre demos e kratia e isso trazer empecilhos à soberania popular (LOPES, 2007). Retrato desse fato é quando se dá a existência da cultura do sigilo, ou seja, da negação da informação. À semelhança da teoria do agente-principal, a negação de informação para a população gera divergência de conhecimento e uma assimetria entre Estado e sociedade, propiciando terreno para desenvolver ilegalidades, e fenômenos corruptos4.
Com isso, as desigualdades no acesso à informação favorecem atitudes de autoridades que confundem interesses públicos com privados. Portanto, o direito à informação surge como ferramenta democrática de enfrentamento desse fenômeno corrupto e de atos ilícitos, e sua efetividade envolve a ruptura dessa cultura do sigilo. Exemplo disso é que “[...] jornalistas investigativos e ONGs de monitoramento podem usar o direito de acesso à informação para expor atos ilícitos e ajudar a erradicá-los” (MENDEL, 2009, p. 05).
Além disso, ainda tomando por eixo de abordagem o regime democrático, este também se caracteriza pela liberdade de expressão – e, como mencionado no início desta seção, direito à informação tem seu ponto de contato com tal categoria, conforme explanam algumas leituras desse tema, bem como o fazem documentos internacionais.
Assim, a liberdade de expressão, sendo uma das facetas do direito à informação, permite com que a sociedade informe (veiculação de informação), seja informada (recebimento de informação) e, ainda, se informe (busca de informações), características fundamentais para a democracia (LIMA et al, 2014; MENDEL, 2009).
Dessa forma, o direito de acesso à informação (buscá-la, recebê-la e transmiti-la) envolve as questões de: democracia com seus mecanismos de participação por parte dos cidadãos, e formas de controle (accountability); denúncias de corrupção, de ineficiência de governos, e de violações de direitos humanos; e também a liberdade de expressão. Justamente por se relacionar com esses fatores, e por estarem presentes em tratados internacionais sobre o tema e nas próprias constituições dos países, é considerado um direito fundamental. (KLITGAARD, 1991; MENDEL, 2009).
Partindo do conceito e de áreas com que se relaciona, passa-se agora à positivação do direito à informação, ou seja, ao apontamento de documentos que traduzem o contexto internacional de tratamento do tema. Dentre tais documentos, destacam-se tratados e relatórios de órgãos internacionais que promovem a proteção de direitos humanos, como a ONU e a OEA, sendo que tais perspectivas alinham-se à anteriormente descrita: à de que liberdade de expressão se relaciona com o direito à informação (MENDEL, 2009).
Assim, em se tratando da ONU, em 1946 na primeira sessão de sua Assembleia Geral, foi reconhecida a expressão “liberdade de informação” – entendida como livre fluxo de informação – pela Resolução n. 59: “A liberdade de informação constitui um direito humano fundamental e [...] a pedra de toque de todas as liberdades a que se dedica a ONU” (MENDEL, 20009, p.17). Depois, em 1948, a referência se dá na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 19, segundo o qual:
[...] toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras (ONU, 1948).
Atrelado a essa Declaração, Mendel expõe o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos que também garante liberdade de expressão em seu art. 19:
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha (BRASIL, 1992).
Ocorre que no momento de sua elaboração, esses tratados não enunciavam um “direito à informação” explícito e voltado para os dados públicos sob poder estatal, o que se deu apenas posteriormente. Percebe-se, com isso, o contexto da trajetória do tratamento desse direito: incialmente o reconhecimento de um papel social da liberdade de expressão individual e do fluxo livre de informações na sociedade; da importância da proteção do emissor e do destinatário da informação e, em seguida, de documentos sob a posse do Estado. “Este reconhecimento agora está sendo compreendido como inclusivo do direito à informação no sentido do direito de pedir e receber acesso à informação sob o controle de órgãos públicos” (MENDEL, 2009, p. 08).5
No contexto da Organização dos Estados Americanos, por sua vez, expõe-se o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo o qual todos têm direito à liberdade de pensamento e de expressão, compreendendo
[...] a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. (OEA, 1969).
Além dessa Convenção, há as resoluções das Assembleias da OEA sobre o direito de acesso, que reiteram a obrigatoriedade dos Estados membros (desde 2003) para promoção do acesso à informação pública, como requisito para a democracia. Além delas, por fim, cita-se também a Declaração Interamericana de Princípios de Liberdade de Expressão:
Toda pessoa tem o direito de acesso à informação sobre si e seus bens com presteza e sem ônus, independentemente de estar contida em bancos de dados ou cadastros públicos ou privados e, se necessário, de atualizá-la, corrigi-la ou emendá-la. 4. O acesso à informação mantida pelo Estado constitui um direito fundamental de todo indivíduo. Os Estados têm obrigações de garantir o pleno exercício desse direito. Esse princípio permite somente limitações excepcionais que precisam ser definidas previamente por lei na eventualidade de um perigo real e iminente que ameace a segurança nacional das sociedades democráticas (CIDH-OEA, 2000).
A partir dessa análise, fica evidente que organismos internacionais que atuam na proteção de direitos humanos reconheceram a importância do direito à informação pública como um direito fundamental. Tendo esse reconhecimento por base, recomendam aos países signatários a adoção de legislações para o respeito a este direito, vinculado à liberdade de expressão, fundamento para democracia, e para fiscalização dos representantes do povo e controle da corrupção (MENDEL, 2009).
2.2 Lei de Acesso à Informação e seus princípios: referências estrangeiras e a lei brasileira
Uma vez abordado o contexto internacional de tratamento do tema (por meio de tratados e convenções explicitados), agora objetiva-se elencar determinados princípios presentes nas Leis de Acesso à Informação. Para tanto, primeiramente será feita uma abordagem de legislações de países que são consideradas referências nessa questão e, em seguida, será dado enfoque na Lei de Acesso à Informação do Brasil, Lei n. 12.527/11, passando brevemente por sua criação e destacando os princípios norteadores (tomando por base os trabalhos da organização não governamental Artigo 19).
Em se tratando das leis de acesso, grande parte das obras se remete à Lei do Reinado da Suécia (Freedom of Writing and of the Press), de 1766, que assegurou tal direito, versando sobre a publicidade. Destaca-se também a Legislação Finlandesa (Lei n. 83/1951, Act on the Publicity of Official Documents atualizada em 1999 pelo Act on the Openness of Government Activities), segundo a qual os documentos que autoridade pública expede são públicos (exceto os de caráter sigiloso) – argumenta-se, ainda, que a estrutura dessa legislação possui similaridades com a lei brasileira de acesso à informação.
Cita-se também a FOIA (Freedom of Information Act de 1966), dos Estados Unidos, que, apesar de não ser algo novo no cenário internacional (tendo em vista as leis dos países anteriormente expostos), contribuiu para afirmar a importância desse direito. No entanto, há de se relatar que o presidente americano Lyndon Johnson aprovou-a contrariado, além de que ela detinha uma nuance de manutenção do segredo. Ela preocupou-se com as exceções ao acesso (e, por isso, o acesso à informação neste caso não se aplica a informações militares, ao Congresso, às Cortes Federais e a algumas partes do Executivo que têm direta relação com a Presidência, tampouco ao Poder Executivo dos Estados).
Por fim, outra lei importante corresponde à mexicana, em vigor desde 2003, caracterizada pela fácil compreensão, e por trazer em seu corpo conceitos e princípios das orientações de órgãos internacionais. Observa-se, neste caso, que desde 1977 mas também em 2002 emendou-se e ampliou-se o art. 6º da Constituição Mexicana que dispõe sobre o direito de acesso à informação garantido pelo Estado, e que a lei em tela possui o enfoque no acesso e não na exceção (CINTRA, 2016; PAES, 2011).
O Brasil, por conseguinte, está entre os 90 primeiros países a aprovar a Lei de Acesso à Informação Pública (LAI). Constitucionalmente, os dispositivos que retratam essa temática são: art. 5º, incisos XIV (sigilo da fonte para exercício profissional); XXXIII (receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou coletivo no prazo devido excetuando-se informações sigilosas para segurança do Estado e da sociedade); XXXIV (direito de petição, e obtenção de certidões de órgãos públicos); LXXII (habeas data); LXXVII (gratuidade do habeas corpus e habeas data); art. 37 (princípio da publicidade), II (acesso dos usuários a registros administrativos sobre atos governamentais); art. 93, IX (julgamentos públicos dos órgãos judiciários); art. 216, §2º (gestão da documentação governamental e possibilidade de sua consulta a quem necessitar). (BRASIL, 1988; CINTRA, 2016; FARRANHA, SANTOS, 2015; LIMA et al, 2014).
Conhecendo o respaldo constitucional sobre o direito em debate, ainda faltava uma legislação específica que regulamentasse especificamente tal questão (em especial o art. 5º, XXXIII, CF), e, até então, havia leis ou decretos esparsos que apenas tangenciavam o tema. Nesse sentido, é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei n. 101/2000), Lei da Transparência (Lei n. 131/2009); Decreto n.5.482/2005 (divulgação de dados de órgãos da administração pública federal na internet); Lei 11.111/2005 (regulamentação da parte final do art. 5º, XXXIII sobre informações sigilosas); Lei 8.159/1991 (Lei da Política Nacional de Arquivos Públicos). Todavia necessitava-se de diploma que compilasse e congregasse as temáticas relativas à transparência e ao acesso a informações públicas (BRASIL, 1988; 1991; 2000; 2005; 2009; CINTRA, 2016; PAES, 2011).
Logo, tendo traçado esse contexto nacional sobre a temática, a elaboração da LAI envolveu propostas tanto de integrantes do Poder Legislativo (Câmara dos Deputados), quanto de grupo institucional do Poder Executivo (CGU, Ministério da Justiça e Casa Civil), e teve-se o seguinte percurso (simplificado) da Figura 01:
Figura 01 - Breve percurso histórico de elaboração da LAI. Elaboração própria. Fonte: CINTRA, 2016.
Após esse trâmite de mais de oito anos, a LAI (Lei n. 12.527/11) foi sancionada em 2011 e entrou em vigor em maio de 2012.
Considerando agora os princípios contidos nesta legislação, destaca-se o da transparência. Acerca dele, sabe-se que “[...] o direito de acesso à informação se presta a munir o cidadão de informações detidas pelo Estado, para que seja possível, [...] o controle social. E isso pode se dar basicamente de duas maneiras: [...] transparência ativa ou [...] transparência passiva” (BRASIL, 2016, p. 52). A transparência ativa consiste na divulgação espontânea de informação pelo Estado, podendo o cidadão acessá-las diretamente. Já a transparência passiva, por sua vez, corresponde à solicitação de uma pessoa, aos pedidos de acesso direcionados a órgãos do governo. (MTFC, 2016; FARRANHA; SANTOS, 2015). Nesse sentido, tem-se que:
O direito à informação é mais comumente associado ao direito de pedir e receber informações de órgãos públicos. Trata-se de uma modalidade-chave pela qual o direito é exercido, mas não é a única. A maioria das leis sobre direito à informação atribui uma obrigação aos órgãos públicos de publicar informações de forma proativa ou rotineira, independentemente de requisições específicas (MENDEL, 2009, p.05).
A transparência, portanto, permite ao cidadão conhecer mais e melhor o Estado, reduzindo assimetrias e possibilitando maior controle em relação à ação do governante. Além disso, tal conceito, uma vez abarcado como política pública, relaciona-se ao aprofundamento democrático, boa governança e prevenção e combate à corrupção, conforme analisado. (MENDEL, 2009; O’NEILL, 2006).
A Organização Artigo 19, por sua vez, também elencou determinados princípios (mencionados por Mendel) para que fossem seguidos pelos países ao elaborarem suas respectivas leis de acesso. Assim, enumeram-se no quadro 01:
Quadro 1 - Princípios norteadores para as leis de acesso à informação. Elaboração própria.
Princípios norteadores para as leis de acesso à informação |
1) máxima divulgação: deve ser ampla a abrangência do direito à informação, em termos das informações (registros mantidos por órgãos públicos) e órgãos governamentais envolvidos (todos os Poderes e escalões do governo, empresas públicas, órgãos judiciários e entidades privadas que exercem função pública), bem como de indivíduos que possam requerer acesso. Tais questões podem ser encontradas na LAI, por exemplo, no art. 1º, parágrafo único, incisos I e II (órgãos e Poderes); e art. 10 (pedido feito por qualquer interessado); |
2) obrigação de publicar: não basta apenas atender os pedidos, os órgãos públicos devem divulgar categorias de informação de modo voluntário, pro-ativo. Prevê-se que tal medida pode ser limitada pela fonte de recursos, todavia, com o tempo e aperfeiçoamento de novas tecnologias, a publicação e divulgação de informações são mais facilitadas. Na LAI: art. 3º, III trata do uso de tecnologias para consecução dos objetivos da lei; e art. 6º trata da divulgação da informação; |
3) promoção de um governo aberto: a cultura do sigilo deve dar lugar à da transparência e essa mudança deve acontecer também entre funcionários públicos (agem diretamente nessa área). Para tanto, são exemplos: ações como a publicação de cartilhas sobre como requerer informações, campanhas conscientizando do direito de acesso, penalidades para quem obstruir acesso, instalação de sistemas de gestão de registros. As responsabilizações encontram-se nos art. 32 e 33; art 41 (órgão do Executivo para promover ações de transparência, treinamento de agentes públicos, monitoramento da aplicação da lei na Administração Pública Federal, encaminhamento de relatório ao Congresso sobre implementação da lei); |
4) limitação da abrangência das exceções: exceções devem ser restritas e claramente definidas, não se justificando impedimentos de divulgação para proteger governos de constrangimentos de exposição de atos ilícitos. Essas restrições devem observar padrões no que se referem à liberdade de expressão. Os arts. 23 e 24 tratam das informações relativas à segurança da sociedade e do Estado; art. 25 e 26, da proteção de informações sigilosas; arts. 27 a 30 sobre (re)classificação e desclassificação de informações; |
5) procedimentos que facilitem o acesso: os pedidos de acesso precisam ter uma sistematização clara de seu procedimento. Ele deve ser simples, rápido e gratuito (ou de baixo custo); não deve ser necessária a justificação; recusas de acesso devem ser justificadas; o tempo para resposta deve se enquadrar em limites definidos; a previsão de direito de apelação em caso de recusa também é importante; bem como a existência de um órgão para examinar tais recursos. Alguns desses desdobramentos se encontram no art. 10 §3º (não necessidade de motivação do pedido); art. 11 (§§ 1º e 2º prazo de 20 dias prorrogáveis por mais 10; §3º acesso do usuário ao pedido feito, §4º possibilidade de recurso em caso de negação), arts. 15 a 20 (recursos); |
6) custos: não pode o custo do pedido ser um fator limitador do direito de acesso; o ideal é a gratuidade, e, para eventuais valores cobrados, que estes não excedam os custos efetivos. O art. 12 aborda tal princípio; |
7) reuniões abertas: órgãos públicos com suas reuniões abertas ao público; |
8) divulgação tem precedência: as leis existentes em desacordo com o a máxima divulgação devem ser revisadas e, a depender do caso, revogadas; |
9) proteção dos denunciantes: pessoas que revelam informações sobre atos ilícitos devem ser protegidas, e não condenadas ou sofrerem sanções legais por isso. |
Fonte: BRASIL, 2011; MENDEL, 2009; PAES, 2011.
Após elencar tais princípios, cuja maioria se encontra na Lei n.12.527/2011, esclarece-se que é necessário romper com a cultura de sigilo (proveniente, no caso brasileiro, de período ditatorial) e incentivar e sedimentar uma cultura da transparência (vinculada a princípios democráticos).
Isso é possível não somente por meio de legislação, mas também por ações institucionais (pro-atividade dos órgãos): campanhas, capacitação para funcionários, além de novos canais de participação ou de interação social (para politização em torno de questões públicas) (FARRANHA; SANTOS, 2015).
Nessa vertente, o caso brasileiro, a partir da publicação da LAI, marcou-se por
[...] [uma] mudança radical de perspectiva de visão do cidadão – sujeito ativo do direito de ser informado e de uma cultura de séculos de sigilo vigente nos órgãos públicos. Não se altera o estatuto de uma cultura autoritária com uma lei apenas. Acessar informação se traduz, nos dias de hoje, não somente no ato de busca, mas também de encontrar condições favoráveis para que essa tarefa seja facilitada, quer por entes públicos, quer pela adoção de tecnologias para a busca e acesso. [...] Desrespeitar essas condições [...] equivaleria ao não cumprimento do dispositivo constitucional de direito à informação, a relegar o cidadão à condição de vivente desinformado, ao aprofundamento do hiato e assimetria informacional (LIMA et al, 2014, p. 64).
Dessa maneira, considerando essa caracterização do direito ao acesso à informação, seus princípios e áreas afins, o presente trabalho busca agora relacionar tais questões com instituições que, da mesma forma que o direito em debate, contribuem para o enfrentamento de atos de corrupção e de confusões entre questões públicas e privadas: as comissões de ética do Poder Executivo Federal.
3 COMISSÕES DE ÉTICA NO BRASIL
Nessa seção, objetiva-se inicialmente apresentar o contexto de criação das comissões de ética pública do Executivo Federal. Isto, por sua vez, concretiza-se por meio da explanação do clima de insatisfação popular diante de escândalos do cenário político, somado a tratados internacionais assinados à época pelo Brasil, que contribuíram para reformas administrativas dessa área.
Assim, o foco é mapear a evolução dessas instituições que enfrentam suspeitas de ilicitudes ou lidam com servidores e funcionários que mesclam interesses públicos e privados. Uma vez mapeada essa evolução e possuindo o conhecimento desse sistema de ética pública liderado pela Comissão de Ética Pública da Presidência, reúnem-se as condições necessárias para relacionar o funcionamento das comissões de ética com os princípios da lei de acesso à informação (na seção 3).
3.1 Contexto de criação e desenvolvimento das Comissões de Ética
No que tange ao contexto de criação das Comissões de Ética nos órgãos do serviço público federal, acontecimentos dos anos de 1990 foram responsáveis por gerar insatisfação popular acerca da conduta de políticos e servidores para com o interesse público. Assim, casos como dos “anões do orçamento” e do impeachment de Collor foram pontos chave da insatisfação popular naquele período em específico. Somando-se a isso, haveria a má prestação dos serviços públicos ligada a condutas eticamente inadequadas, além da percepção de impunidade a transgressões.
Consequentemente, levou-se a um estado de ceticismo, havendo desgaste especialmente quanto ao comportamento das autoridades, envolvendo conflitos de interesses diante da dificuldade de separação da esfera pública da privada (CARNEIRO, 1998; BRASIL, 2014). O governo se desgasta “[...] porque tarda em tomar decisões e [...] desgastam-se os detentores de cargos públicos que, com frequência, injustamente, têm sua reputação moral e profissional atingida” (CARNEIRO, 1998, p.122).
Diante disso, para aperfeiçoar o tratamento de desvios éticos, apontou-se para a necessidade de trabalho pedagógico permanente com o funcionalismo público, bem como melhoramentos na detecção e repressão de infrações. Todavia, faz-se a ressalva de que apenas a multiplicação de leis e decretos rigorosos não traz efetivas contribuições para o tratamento de desvios de conduta ética (CARNEIRO, 1998). Sob esse contexto, em 1994, uma primeira ação foi editar o Decreto nº 1.171 responsável por criar o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, abrangendo deveres e vedações do servidor, e a criação das comissões de ética no serviço público (BRASIL, 1994).
No entanto, foi diante de tratados internacionais que tais institutos receberam maior incentivo. Em 1996, a Convenção Interamericana contra Corrupção (promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial nº 4.410 de 2002) abarcou em seu Artigo III, item 03, a necessidade de instruir membros dos órgãos públicos para entenderem suas responsabilidades e as normas éticas que regem suas atividades – como forma de prevenir corrupção. Cita-se, também, a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da OCDE, em 1997 (promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial nº 3.678 de 2000). Esta organização (OCDE) realizou estudo de medidas adotadas por países para controle da conduta ética dos servidores e para responder às exigências sociais por transparência do processo decisório governamental. Essas medidas podem ser agrupadas em três vertentes: 1) revisão institucional e procedimentos para identificar falhas no tratamento de questões éticas; 2) efetivas reformas da administração pública; e 3) adoção de medidas a partir da inexistência de arcabouço jurídico sobre o assunto (CARNEIRO, 1998).
Além disso, as seguintes propostas estão presentes no documento (OCDE), intituladas de “Infraestrutura Ética” composta por: a) arcabouço legal (tratar a infração ética observando a separação das transgressões de natureza penal das de natureza civil ou administrativa); b) mecanismos relacionados à responsabilidade (prestação de constas, accountability, promoção de transparência das ações governamentais); c) participação e escrutínio público (ou seja, sob a vigilância da sociedade e de meios de comunicação); d) compromisso político (o compromisso do governo em valorizar conduta ética, e aplicar recursos materiais e humanos para estrutura nessa área); e) códigos de conduta (implementação de códigos de conduta nos diversos órgãos públicos, ou adoção daqueles de caráter geral); f) socialização profissional (educação e treinamentos de servidores públicos para conhecimento de tais padrões de conduta, a partir de trabalho pedagógico de difusão das normas); g) condições de serviço (focando-se no ambiente e na moralidade do serviço público); h) existência de órgão coordenador de ética (órgãos encarregados de questões éticas sejam eles vinculados aos Poderes, ou agências de atuação independente com funções de fiscalização, aconselhamento, supervisão) (CARNEIRO, 1998).
Considerando a insatisfação da opinião pública e as propostas de reformas presentes em tais documentos internacionais, no plano nacional passou-se a ter algumas reformas também. No Executivo Federal, elas foram promovidas pelo, então, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Destaca-se, aqui (além do citado Decreto 1.171 de 1994 que criou o código de ética do serviço público), a criação da Comissão de Ética Pública da Presidência da República - CEP (Decreto de 26 de maio de 1999). De início, a atuação dessa Comissão restringia-se a uma instância de consulta da Presidência da República para questões de natureza ética. (BRASIL, 1999).
Depois, foi aprovado o Código de Conduta da Alta Administração Federal (CCAAF), pela Exposição de Motivos n. 37 de 18.08.2000. Tal código destinou-se a ministros de estado, secretários-executivos, diretores de empresas estatais e de órgãos reguladores (art.2º, I, II e III deste Código). Em sua exposição de motivos, menciona-se que tal Código foi necessário diante de recrutamento, no setor público, de profissionais oriundos do setor privado – o que merecia atenção para o caso de conflitos de interesse (controle das atividades privadas do administrador público) –, e pelo fato de a autoridade pública deixar o cargo para atuar no setor privado (arts. 14 e 15). (BRASIL, 2000).
Além disso, tem por objetivo a prevenção de condutas incompatíveis com o esperado do serviço público e o norteamento de condutas, cuja possível transgressão não implicará na violação da lei, mas no descumprimento de padrões – “tendo uma punição de caráter político: advertência, censura ética, ou até uma recomendação de exoneração (a depender da gravidade da transgressão).” Nesse sentido, a CEP passou a implementar e monitorar o CCAAF (BRASIL, 2000).
Em 2007, por meio do Decreto n. 6.029, instituiu-se o Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, composto pela CEP, Comissões de Ética de que trata o Dec. 1.171/1994, e demais Comissões de Ética (e equivalentes) presentes nas entidades e órgãos do Poder Executivo Federal (art. 2º, I, II e III, Dec. 6029/2007). Com isso, a CEP passou a coordenar, avaliar e supervisionar todo o sistema de ética no Executivo Federal, podendo instaurar processo de apuração de ato que esteja em desacordo com o Código, de ofício, ou por denúncia fundamentada com indícios suficientes (art. 18). Logo, a CEP:
Incorporou o papel de liderança na promoção de ações visando assegurar a adequação e a efetividade dos padrões éticos nas entidades e órgãos que integram o Poder Executivo Federal, desenvolvendo capacitações voltadas para os integrantes do Sistema de Gestão da Ética e da sociedade em geral, além da participação em eventos internacionais (BRASIL, 2014).
4 COMISSÕES DE ÉTICA E TRANSPARÊNCIA: COMO ESSES DISCURSOS SE CRUZAM?
Para tentar responder esta pergunta, é de grande importância ter por base o contexto de criação das comissões de ética no Executivo Federal, bem como os diplomas (leis e decretos) responsáveis pela institucionalização destes órgãos, dos códigos de ética e o funcionamento desse sistema – vistos na seção anterior.
Agora, para buscar a relação entre as comissões de ética e a transparência (princípio presente na LAI), discorre-se sobre a CEP, analisando seu site (justamente por ela ser o órgão responsável por administrar todo o sistema de ética pública do Executivo Federal); sobre pedidos de acesso para outras comissões de ética; e, por fim, verificam-se as impressões de servidor da CEP acerca da relação que é objeto deste estudo.
4.1 CEP e transparência ativa
Considerando as atribuições da CEP e o conceito de transparência ativa, busca-se verificar sua relação com a transparência a partir de algo que se concretiza com o seguinte questionamento: como a CEP tem aplicado esse princípio por meio de seu endereço na internet?
Para essa resposta, verificaram-se os itens presentes na LAI a respeito da divulgação de informações e o que está presente no seu site. Logo, uma análise do endereço eletrônico da Comissão de Ética da Presidência – CEP (art.8º, §2º, LAI – obrigatória divulgação na internet em sítios oficiais) mostra que ela atende sim a requisitos mínimos de transparência ativa para que o órgão divulgue informação de fácil acesso, conforme demonstra os quadros 02 e 03.
Quadro 02 - Requisitos mínimos de transparência ativa no site CEP. Elaboração própria.
Requisitos mínimos de transparência ativa presentes no site da CEP (art.8º, §1º, LAI) |
(I) apresenta “registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público” (inclusive com os nomes dos membros desde a implementação da CEP); |
(II) indica o portal responsável por divulgar “registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros”; |
(III) há indicação para “registros das despesas”; |
(IV) há “informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados”; |
(V) também consta seção para “dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades”; |
(VI) e para “respostas a perguntas mais frequentes da sociedade”. |
Fonte: Brasil (2011).
Quadro 03 - Requisitos de sítios eletrônicos presentes no site CEP. Elaboração própria.
Requisitos de sítios eletrônicos presentes no site da CEP (art. 8º,§2º, LAI) |
(I) ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita acesso à informação; |
(II) gravação de relatórios em formatos eletrônicos para análise das informações – como exemplo, encontram-se as atas das reuniões da CEP, com deliberações, ofícios recebidos, número de processos que foram objeto de debate; |
(III) possibilidade de “acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina”; |
(IV) divulgação dos “formatos utilizados para estruturação da informação”; |
(V) garantia da “autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso”’; |
(VI) manutenção das “informações disponíveis para acesso” – nestes incisos percebe-se sua observância pelas informações atualizadas, fornecidas pela própria CEP, e de facilidade de acesso, cópia e divulgação, por exemplo; |
(VII) indicação de “local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio”; |
(VIII) há opção para acessibilidade de conteúdo, no entanto, no momento da verificação, houve dificuldades no acesso. |
Fonte: Brasil (2011).
Percebe-se, portanto, analisando brevemente o endereço eletrônico da Comissão de Ética da Presidência da República, que esta tem observado os dispositivos da LAI. Isso permite afirmar que, nesse quesito, cumprindo o estabelecido na LAI acerca de itens divulgados, essa é uma das formas com que a comissão concretiza a transparência de seus atos e funcionamento.
4.2 Comissões de Ética e transparência passiva
Esse tópico, por sua vez, procura discutir tanto a CEP quanto as demais Comissões de Ética do Executivo Federal. Analisam-se as respostas dadas aos pedidos de acesso à informação sobre tais comissões (transparência passiva) em base de dados fornecida pelo Ministério da Transparência Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Dessa maneira, faz-se a busca com os seguintes termos: “comissão de ética”.
Dentre alguns dos resultados obtidos, por sua vez, pode-se apontar que geralmente são solicitados: a) composição da comissão de ética de determinado órgão federal (a exemplo da ANEEL, e da Caixa Econômica Federal); b) leis e decretos sobre comissão de ética; c) informações da apuração de denúncias feitas pelo solicitante; d) acesso às atas das reuniões da CE, CEP, por exemplo; e) organização institucional da comissão de ética (como, por exemplo, se se vinculam a outro órgão).
A título de exemplificação, selecionaram-se casos (presentes no quadro 04) referentes à Administração Direta e à Indireta compreendendo, neste último caso, algumas autarquias (ANEEL, BACEN, ICMBio) e empresa pública (Caixa Econômica Federal):
Quadro 04 - Casos analisados. Elaboração própria.
Casos analisados – Transparência Passiva e Comissões de Ética |
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Número, data e órgão |
Pedidos e respostas |
02680002014201657 Min. do Meio Ambiente 14/09/2016
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Solicita-se a quantidade de pedidos, com base na Portaria Interministerial n. 333/2013 e Lei n. 12.813/2013, sobre autorização de exercício de atividade privada, feitos por servidores do Ministério do Meio Ambiente (com o ano, órgão a que pertence dentro do ministério, e atividade privada que pediu para que lhe fosse autorizada). Em resposta (divulgada em arquivo anexo), informou-se que o órgão competente para essa análise era o então Ministério de Transparência Fiscalização e Controle. Importa notar que nos motivos, expõem-se os arts. 4º e 8º da Lei 12.813/2013 que tratam da questão do conflito de interesses do agente público que exerce atividades privadas - e que este, em caso de dúvida da possibilidade desse exercício concomitante, deve consultar a CEP ou a CGU, a depender da competência (sendo o presente caso atribuído à CGU). Em complemento, esclareceu-se que a licença para tratar de interesses particulares é permitida pelo Ministério, preenchendo formulário específico disponibilizado aos servidores. |
48700006120201544 ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) 15/08/2015 |
Questionou-se sobre integrantes da comissão de ética, atribuições, quais cargos ocupam, e quais medidas a ANEEL tomaria em caso de denúncia por cidadão. Requereu cópia do fundamento legal das respostas. Resposta: acesso à informação concedido, indicando-se o site e os nomes dos que compõem a comissão, com respectivas atribuições; informou-se, ainda, que no caso de denúncia deve-se observar o caso concreto; e em termos de legislação foram indicados o Código de Ética da ANEEL, o Regimento Interno da respectiva Comissão de Ética, o Código de Ética do Serviço Público do Executivo Federal, a Resolução da CEP n.10/2008, disponíveis nos sites da ANEEL e da CEP. |
18600002175201623 BACEN (Banco Central do Brasil) 05/10/2016 |
Requereu-se informação sobre a que órgão a Comissão de Ética do BACEN é subordinada. Resposta: acesso concedido. Informou-se que a Comissão de Ética (CEBCB) é um órgão colegiado autônomo, não havendo subordinação. Esclareceu-se que as Comissões de Ética dos órgãos do Executivo Federal “[...] são integrantes do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, sendo a Comissão de Ética Pública da Presidência da República (CEP) a coordenadora, avaliadora e supervisora desse sistema” conforme art. 4º, inciso IV, do Decreto nº 6.029/2007. Além disso, a autoridade máxima do órgão é quem designa os membros da respectiva Comissão, “[...] no caso do Banco Central, os membros da CEBCB são nomeados pelo Presidente, dentre servidores titulares de cargo efetivo, para mandatos não coincidentes de três anos, permitida uma única recondução (art. 2º, caput, do Regimento Interno da CEBCB)”. Elencaram, ademais, normas: o Regimento Interno do Banco Central, art. 132, caput e inciso I, que afirma que a CEBCB é órgão colegiado integrante da estrutura do Banco Central; o “Regimento Interno da CEBCB, que cuida das competências, da composição, das atribuições dos membros”; o Código de Conduta dos Servidores do Banco Central do Brasil. “Com base no quadro normativo apresentado, é de se concluir que a Comissão de Ética constitui-se na forma de órgão colegiado autônomo, porém com recursos humanos, materiais e financeiros garantidos pelo Banco Central”. |
02680001300201603 ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) 13/06/2016 |
Acesso foi concedido após recurso. A solicitante pede esclarecimentos sobre que providências foram adotadas com suas denúncias de assédio moral e de mau uso de recursos público, mencionando e-mails encaminhados com documentos probatórios. Primeira resposta: o ICMBio recorre à Res. n,10/2008 da CEP e art. 13 do Dec. n.6029/2007, segundo os quais “as denúncias encaminhadas a esta Comissão são apuradas sob a chancela de reservado [...]. Depois de finalizados os processos, tornam-se de acesso público mediante solicitação de consulta à Comissão de Ética-CE/ICMBio”. Além disso, para preservação da ampla defesa e do contraditório, apenas os denunciados têm total acesso ao processo. “Posteriormente, as partes são notificadas das decisões por esta CE, conforme estabelece o Art. 2, XVII da Resolução 10/08 da CEP. Atendendo à solicitação via SIC, informamos que não há processo de acesso público na CE, em relação ao assunto descrito”. Por fim, acrescentou que as atas são públicas e disponíveis no site do instituto. Recurso: a solicitante explicou que não solicitou cópia do processo ou informação interna, mas deseja saber se se abriu procedimento. Em resposta: a Comissão de Ética da ICMBio reiterou a anterior, mas informou que uma denúncia obteve admissibilidade e que a denunciante havia sito notificada do Procedimento Preliminar 05/2015, e da instauração do PAE (Processo de Apuração Ética) por ofício e e-mails, porém não deu ciência disso. |
99902004546201528 Caixa Econômica Federal 23/11/2015 |
Solicitou-se lista de membros da Comissão de Ética da CAIXA, com nome, matrícula e função, e questionou qual procedimento da instituição quando membros da Comissão de Ética estão envolvidos em irregularidades. Primeira resposta: CAIXA negou pedido, pois por ser empresa pública, estratégica para o governo, opta por não publicar dados sobre cargos, com base no Decreto 7.724, “[...] que assegura que a divulgação de informações das empresas públicas em regime de concorrência, estará submetida às normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a fim de assegurar sua competitividade, governança corporativa”. Citou portaria interministerial 233 do Ministério do Planejamento afirmando que empresas públicas em regime de concorrência não tem obrigação de divulgar essas informações. No que se refere aos procedimentos que a empresa adota, cita-se o seu Código de Ética (que norteia a condução dos negócios da CAIXA, que contém competências da Comissão de Ética, “[...] dentre elas a de encaminhar à Comissão de Ética Pública o processo de apuração quando o denunciante ou denunciado for membro da Comissão de Ética”). Além disso, mencionou os sites para obter informações que estão disponibilizadas. Houve primeiro recurso, para o qual a empresa reafirmou entendimento anterior. Entrou-se com segundo recurso e obteve-se mesma negação. Ante os dispositivos da LAI (arts. 15 e 16) e do Decreto 7.724/2012 (art. 23): após indeferimento de acesso, o possível recurso interposto será direcionado para autoridade hierarquicamente superior, e, mais uma vez negado, à Controladoria-Geral da União (CGU) – fato ocorrido nesse caso. Assim, a então CGU deferiu parcialmente o recurso, determinando que a CAIXA disponibilizasse nome e função dos funcionários da empresa que atuam na Comissão de Ética, via E-SIC, descaracterizados os números de matrícula dos funcionários. |
Fonte: Site CGU - Banco de dados de pedidos de acesso à informação.
Diante desses casos, percebe-se que há cumprimento do dever de transparência passiva pelas comissões de ética dos órgãos do Executivo Federal, ao responderem acerca da sua estrutura e composição, legislações para respaldar possíveis ações e denúncias.
Apesar de em alguns ter havido negação de acesso, a justificativa reside na natureza da empresa pública à qual foi dirigido o pedido de acesso, sendo-lhe permitido negar prestar informação desde que seja estratégica e que afete a concorrência de mercado, bem como se justifica na não correspondência a pedido formulado.
Destaca-se que também se aplicam exceções de acesso conforme prevê o art. 6º da LAI, “II - proteção da informação sigilosa e da informação pessoal” (BRASIL, 2011), em termos de assegurar a ampla defesa e o contraditório conforme aponta Res. 10/08 da CEP e art. 13 do Dec. nº 6.029 (chancela “reservado” durante procedimento de apuração de prática de desrespeito às normas éticas).
4.3 Entrevista
Com o objetivo de retratar essa abordagem com elementos de empiria (ainda que não em pretensão de generalidade empírica), realizou-se entrevista, devidamente respaldada com termo de consentimento, buscando-se impressões de próprio agente público (não será identificado) que atua na Comissão de Ética Pública da Presidência.
Logo, por meio de entrevista semi-estruturada, procurou-se esclarecer algumas questões na visão deste servidor da CEP, dentre elas: como as Comissões de Ética, no Poder Executivo Federal, se apropriam dos princípios e medidas apontadas pela Lei de Acesso à Informação?
Como resposta, o entrevistado afirmou que se trata de um debate que também surge nas Comissões de Ética:
A LAI nasce a partir de uma discussão havida no Conselho de Transparência da CGU, a partir da noção de que o exercício da transparência constitui uma ferramenta essencial para que a prevenção da corrupção e a afirmação de valores éticos e do controle no âmbito do Poder Público venham a se efetivarem. É nesse cenário que as comissões de ética receberam as novidades contidas na LAI.
A Comissão de Ética Pública tem assento no Conselho de Transparência [...]
Então essa articulação, invisível para muitos, que começa a se estabelecer há 10, 15 anos no governo federal começa a render seus frutos, porque uma política pública voltada a promover o avanço da transparência repercute também na atuação ligada à ética pública [...]
A noção de ética, em geral, e de ética pública, assim como de ética profissional no Brasil, de uma certa maneira, se nós evocarmos nossas memórias ancestrais sobre esse assunto, elas remetem a um lugar não acessível, lugar impermeável. Então as discussões éticas teriam que ser feitas intramuros, teriam que ser discussões reservadas – sob pena de afetar ou ofender a integridade das pessoas envolvidas – o que é bastante curioso. Ou seja, toda discussão de caráter ético do ponto de vista social no Brasil é, de certa forma, contaminada por essa suposição de que a ética é um lugar de esconderijo. E isso não passou ao largo da história do funcionamento da CEP em que pese o valor e a capacitação dos conselheiros e os princípios que a instituição quer valorizar.
Em seguida o entrevistado complementa, relacionando ética à transparência, e a princípios que ganham destaque:
[...] quando ingressei na comissão [...], ainda havia um cuidado excessivo em não permitir que transparecessem as discussões aqui discutidas, como se isso em si fosse algo ofensivo. E pouco a pouco, nós fomos nos abrindo, e é claro que a LAI contribuiu para tanto, fomos nos abrindo ao imperativo de publicidade, que a Constituição também preconiza, e a partir desse imperativo, começamos a não apenas adotar uma maior abertura das apreciações que a Comissão faz – é claro, resguardando o conteúdo dos processos enquanto não finalizados. Nós divulgamos o andamento dos processos: entrou uma denúncia, se o denunciante divulga, está divulgado. Nós comentamos do que se trata, mas não entramos no mérito. No final, isso se torna público. Era algo que não funcionava dessa forma. Isso já é algo predominante nos nossos trabalhos, a partir da convicção de que a atividade pública deve prestar contas à sociedade, ela deve ser uma atividade submetida ao preceito da publicidade - de modo que essa mutação tem se operado e a esfera ética tem se nutrido desses predicados da transparência.
Então tanto a transparência em relação à atuação na esfera ética, quanto também o requisito da transparência para aqueles que passam a ocupar esses cargos, eles têm que transparentemente enfrentar os questionamentos de ordem ética ou de ordem relacionada aos conflitos de interesse. Isso tem que ser transparentemente tratado, não pode ficar oculto, porque nós precisamos dessas revelações para que nós cotejemos.
Outra questão foi a seguinte: como a CEP lida com questões midiáticas? Há vazamentos? Como conduzem isso?
Nós não temos uma experiência de um vazamento que tenha sido proveniente da Comissão. O que pode acontecer é um comentário esparso, in off, de um ou outro conselheiro. Exemplo: recentemente saiu no Estado de SP ou Folha de SP um comentário dizendo que alguns conselheiros da comissão estão a considerar abrir um processo em relação ao ex-ministro Marcelo Calero pelo fato de ele ter gravado o Presidente da República. Quando saiu [...] saí no painel eu [...], já que saiu, eu tenho que dizer que essa matéria não estava sendo examinada, mas que particularmente não enxergava afetação da segurança pública nessa conduta e que o próprio Supremo já definiu que a gravação unilateral não é proibida. Então eu fui a público porque tinha havido isso que vocês estão chamando de vazamento, que é muito raro acontecer aqui. Agora o que acontece é: o denunciante traz a matéria e ele se encarrega de divulgar, ou o próprio denunciado, quando se defende, faz questão de ir a público e explicitar no cenário, no palco público, quais são suas razões [...]
Quando a imprensa procura saber (cópia da denúncia/defesa), nós não damos. Agora, no final, nós temos divulgado o voto, e isso tem feito toda diferença, porque os votos são fundamentados e eles às vezes têm publicado trechos votos.
Outro questionamento foi sobre participação política nas comissões de ética: as Comissões de Ética nascem na reforma gerencial, na perspectiva do interesse público, de trazer mais accountability para o cidadão. Mas tem alguma possibilidade de aprofundamento dessa participação? Ou essa participação é a publicidade que estão dando e aprofundando isso na gestão? Qual a visão que a CEP tem?
A Comissão de Ética tem procurado ocupar um espaço específico, e nós temos defendido isso, porque, de fato, as instituições já existentes têm um caráter absorvente. Há 350 Comissões de Ética na esfera federal, universidades, IFES, empresas públicas, ministérios e órgão públicos em geral. Essas experiências que são pulverizadas em determinadas esferas, falando do caráter absorvente, certas matérias são tidas como disciplinares. Então há uma cultura de carrear isso para PADs, ou para procedimentos disciplinares, sindicâncias etc. Como são consideradas matérias jurídicas, porque de fato existe norma ética, então se é norma é jurídico, existe uma tendência de que as procuradorias das instituições também busquem absorver em certa medida aquilo que é específico da comissão de ética. Então o primeiro papel da comissão de ética é delimitar o seu espaço, que não é o espaço jurídico, que não é o espaço administrativo, que não é sequer o espaço disciplinar propriamente, e que não é um espaço político. É uma esfera própria. Porque você deve imaginar que existam conexões e lateralidades, mas essas conexões têm que ser muito bem cuidadas porque senão há uma dimensão da comissão de ética pública. Então a demarcação desse espaço é fundamental. Agora, nós não somos também ingênuos e não vamos ignorar a repercussão política, a repercussão institucional da atuação, seja da Comissão de Ética Pública, seja das comissões locais, ou até mesmo política – porque uma questão ética interna, por exemplo, pode gerar na universidade, uma repercussão em relação ao juízo que se faz sobre tal ou qual autoridade ou servidor, ou procedimento. [...]
Só o fato de existir uma esfera que esteja aberta, um veículo que está disponível para que determinados temas sejam tratados, isso já provoca, talvez, um reflexo na conduta das pessoas.
Questionou-se, além disso, sobre desafios que as Comissões têm pela frente:
Um dos desafios [...] é a necessidade de definir claramente o sentido da afirmação da ética pública, sem que haja uma estigmatizacão do que seja essa entronização da ética. Então essa ética no sentido da notabilidade de determinadas medidas ou providências ou atuações que ganhem visibilidade social, e deem imagem a esse tipo de heroísmo ou de mitificação das instituições, isso não interessa às comissões de ética. Na verdade não é assim que se constrói de maneira sólida um caminho para ética. Não é com ações de vulto, mas com a preservação da combinação da prudência com a firmeza. Nós precisamos ser firmes em extrair dos preceitos constitucionais o detalhamento do que fazemos. Aquele caput do art. 37 é suficiente, porque ao fim estamos exercitando a impessoalidade ou a publicidade, de uma certa forma estamos também lidando com aspectos relacionados à legalidade. Nós derivamos daí aquilo que vamos fazer nas Comissões de Ética. Creio que a Comissão de Ética deva rejeitar os estigmas e solidificar uma via institucional de avanço desses predicados. Então, fundamentalmente, o trabalho da ética pública é um trabalho eminentemente principiológico, e esses avanços principiológicos são resultado de uma sedimentação de ações.
Em seguida foi-lhe perguntado se existe esse fortalecimento na América Latina:
Nós já temos tido interlocuções com colegas da Argentina, com colegas da Colômbia, do Chile, do México e em todos esses países nós identificamos fenômenos semelhantes, seja da construção humilde e progressiva de uma mudança cultural; e por outro lado, a instrumentalização desse moralismo que também se torna uma ferramenta política em vários países da América Latina. Esse moralismo que de fato já se apresentou na agenda política brasileira, isso há bastante tempo, isso vem provavelmente desde os anos 50 - nós já tínhamos aquilo que se convencionava chamar de udenismo na nossa cultura política - o que não deixa de ser uma instrumentalização muitas vezes incoerente e cheia de lacunas e inconsistências, a instrumentalização dessa ferramenta moral. Isso reforça aquele meu ponto de vista de que isso não é só brasileiro [...]
Em suma, sem democracia autêntica, um sistema de ética não vai funcionar apropriadamente [...] não se constrói uma ética na sociedade a partir de um regramento de conduta dos funcionários se as grandes questões éticas não estas resolvidas. Posso exemplificar no caso brasileiro: enquanto o Brasil não resolve, por exemplo, a situação relacionada com a criminalização da tortura no regime militar, nós vamos ficar com essa lacuna ética a nos perturbar e a contaminar aquilo que venha ser um processo de um sistema de ética autêntico aqui. [...]
E nós não podemos dizer que hoje a realidade brasileira não nos causa preocupação nesse sentido. O próprio jogo de poder que se estabelece no Brasil atual tem evidentes questões que afetam a conduta ética, numa esfera muito mais ampla, e isso termina contaminando a implementação e efetivação de um sistema de ética que seja capilarizado e enraizado.
Sobre a mudança de costumes e sua relação com valores, o entrevistado afirma:
Nós temos procurado assentar que os pronunciamentos de caráter ético, justamente por não serem cogentes, não serem elementos de uma coercitividade forte, serem elementos de uma coercitividade branda, mas eles trazerem valores, trazerem princípios, eles se tornam ainda mais relevantes. [...] E nós, Comissão de Ética, entendemos que para que mudem os costumes, é preciso que nós tenhamos a força dos valores: um pronunciamento ético, que na verdade não vai obrigar ninguém, mas que também passa a ser obedecido sem que haja uma coercitividade.
Diante desses trechos, portanto, percebe-se claramente que transparência (vinculada ao acesso à informação) e Comissões de Ética se cruzam: tal princípio promoveu alterações de tratamento de investigações feitas – o que antes era visto com excesso de cuidado para que discussões não transparecessem, agora há mecanismo de divulgação de atos e debates na CEP pela internet. Ressalva-se, no entanto, que durante o período de investigação, somente quem é parte do processo pode ter acesso (por motivo de ampla defesa, contraditório), e somente após findarem as investigações tem-se acesso público a ele.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, este trabalho teve por objetivo fazer uma relação teórica entre as categorias de “Lei de Acesso à Informação” e de “Comissões de Ética”. Além disso, buscou apontar elementos empíricos voltados para verificar essa relação ao trazer análise de quesitos da LAI com o site da CEP, pedidos de acesso à informação sobre comissões de ética e a entrevista com um servidor da CEP.
Com isso, o direcionamento foi tentar responder à seguinte pergunta: “lei de acesso à informação e comissões de ética – como esses discursos se cruzam?” Assim, encontraram-se relações entre os princípios presentes na LAI e tais instituições que também têm sua responsabilidade no enfrentamento da malversação da coisa pública, do entrelaçamento indevido do público e privado cometido por agentes públicos.
Analisando brevemente a CEP em termos de transparência ativa, tendo por material seu site, percebe-se o cumprimento dos requisitos da LAI ao divulgarem as informações proativamente. Em termos de transparência passiva, verificando os pedidos de informação às comissões expostos neste artigo, também se percebe sua relação por meio das respostas (concedendo o acesso ou justificando ao devidamente ao final do trâmite a negação em casos específicos). Tratando dessa relação sob ótica de servidor da CEP, fica ainda mais clara a importância dessas instituições e também a relação que se tem com a LAI (seja na elaboração deste, seja no uso de seus princípios para possibilitar à população o acesso a seu funcionamento e ações).
Desvela-se, assim, que há uma integração entre as Comissões de Ética e os princípios de transparência ativa e passiva presentes na Lei de Acesso à Informação. Destaca-se a atuação das comissões ao abarcarem exceções de acesso (informações pessoais e sigilosas) durante a tramitação do processo de apuração de infração ética. Ao seu término, por sua vez, é possível sua consulta pública.
Portanto, essa publicidade dos atos das comissões (ressalvados os sigilosos), divulgações de atas das reuniões, divulgação de recursos, de componentes da equipe, de estrutura e organização, de demais informações disponibilizadas no site, bem como o conjunto de procedimentos de apuração de conduta ética, permitem apontar que há esse cruzamento no caminho. E o sentido é um só, a afirmação da ética como princípio para os atos de autoridades e servidores, em respeito ao poder soberano.
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1 Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (PPGD/UnB). Especialista em Direito Eleitoral - PUC MG. Realizou estágio na Central de Conciliação da Justiça Federal entre 2013/2014, e atuou como conciliador, voluntário, no Juizado Especial Cível - anexo UNESP entre 2013/2014. E-mail: murilo.bataglia@gmail.com
2 Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2006) e Mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (1999). Professora adjunta da Faculdade de Direito - Universidade de Brasília - FD/UnB. É Coordenadora e professora do Programa de Pós Graduação em Direito da UnB - PPGD/UnB. E-mail: anclaud@uol.com.br
3 Apesar de ter havido registros anteriores em determinados países acerca dessa abordagem.
4 Corrupção é aqui entendida como o mau uso do poder confiado para obter benefícios privados (KLITGAARD, 1998; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2000).
5 Na sequência, Mendel expõe determinados Relatórios da ONU para a Liberdade de Opinião e Expressão, elencando os de: 1998 - o direito de liberdade de expressão inclui o direito de acesso à informação sob a posse do Estado; 2000 - importância desse direito para a democracia, a liberdade, a participação e o desenvolvimento; 2004, em Declaração Conjunta com outros responsáveis pelo mesmo tema em demais órgãos, em que se afirmou a inclusão desse direito como direito humano fundamental, “[...] que deve ser efetivado em nível nacional através de legislação abrangente [...] baseada no princípio da máxima divulgação, estabelecendo a presunção de que toda informação é acessível e está sujeita somente a um sistema estrito de exceções” (Declaração Conjunta apud MENDEL, 2009, p.9-10).