FRAGILIDADES DAS DEMOCRACIAS NA AMÉRICA LATINA:

UMA ANÁLISE EMPÍRICA

 

THE weaknesses OF DEMOCRACIES IN LATIN AMERICA:

AN EMPIRICAL ANALYSIS

 

 

Armando Albuquerque*

 

 

RESUMO: A terceira onda de democratização repercutiu na América Latina e proporcionou uma série de mudanças nas suas instituições políticas. Este artigo visa tratar da democracia e as suas fragilidades na América Latina após a ‘terceira onda’. Para tanto, ele assume a definição empírica de democracia fornecida pela organização não governamental Freedom House e mensura a democracia a partir da categoria de liberdade e das suas duas dimensões: os direitos políticos e as liberdades civis. Finalmente, com base nos indicadores e índices fornecidos pelo relatório Freedom in the World (2014), passa-se à análise comparada da democracia em 18 países latino-americanos, apontando as suas principais fragilidades que contribuem fortemente para a não consolidação dos regimes democráticos na região.

 

Palavras-chave: Fragilidades. Democracia. América Latina. Análise Empírica.

 

ABSTRACT:The third wave of democratization has had repercussions in Latin America and has brought about a series of changes in its political institutions. This article aims to address democracy and its weaknesses in Latin America after the third wave. To do so, it assumes the empirical definition of democracy provided by the non-governmental organization Freedom House and measures democracy from the category of freedom and its two dimensions: political rights and civil liberties. Finally, based on the indicators and indexes provided by the Freedom in the World (2014) report, a comparative analysis of democracy is carried out in 18 Latin American countries, pointing out their main weaknesses that contribute strongly to the non-consolidation of democratic regimes in Latin America.

 
Keywords: Weaknesses. Democracy. Latin America. Empirical Analysis.

 

Recebido: 15.05.2017

Aprovado: 11.07.2017

 

1 INTRODUÇÃO

 

Nas últimas décadas do século XX a‘terceira onda de democratização’[1] repercutiu na América Latina e proporcionou uma série de mudanças nas suas instituições políticas. Certamente, a passagem dos regimes autoritários para os regimes democráticos se constituiu na mais relevante mudança na política latino-americana daquele período.

Contudo, tal passagem, que contempla de modo geral três etapas, a liberalização, a transição e a consolidação dos regimes políticos, ocorreu de forma diversificada. Em alguns países, as instituições da democracia liberal conseguiram avançar e se consolidar. Em outros, ocorreu apenas a consolidação das instituições da democracia eleitoral e de algumas poucas instituições da democracia liberal, o que impediu a consolidação desta última. Finalmente, houve países em que tanto as instituições da democracia eleitoral quanto aquelas relativas à democracia liberal conviveram com os legados autoritários[2] dos regimes anteriores, configurando, assim, formas híbridas de regimes políticos.

Uma das questões centrais ao se tratar o tema da democracia é defini-la. Não são poucas as concepções existentes e as adjetivações atribuídas a esta categoria. Dessa forma, inicialmente, este artigo sumaria a definição procedural mínima de democracia nas teorias de Schumpeter, Dahl, Huntington e Przeworski. Em seguida, assume adefinição empírica de democracia fornecida pela organização não governamental Freedom House.

Uma vez definida a democracia é preciso mensurá-la. Para tanto, são incorporados os indicadores e índices apresentados pela Freedom House. Nesta perspectiva, o conceito de democracia é mensurado a partir da categoria de liberdade e das suas duas dimensões:direitos políticos e liberdades civis.

Finalmente, com base nos indicadores e índices fornecidos pelo relatório Freedom in the World (2014), passa-se à análise comparada da democracia em 18 países latino-americanos, apontando as principais fragilidades que contribuem fortemente para a não consolidação dos regimes democráticos na região.

 

2 DEFININDO DEMOCRACIA

 

Esta seção abordará, num primeiro momento,a definição procedural mínima de democracia. Num segundo momento, será analisada a definição de democracia eleitoral da ONG Freedom House. Por fim, tratará da mensuração das categorias de liberdade e de democracia.

 

2.1 Definição procedural mínima de democracia

 

Uma definição procedural mínima de democracia é aquela que considera o seu aspecto eleitoral desconsiderando, portanto, os aspectos próprios de uma democracia liberal tais como as liberdades civis[3] e o império da lei. Entre os que advogam esta concepção se encontram Schumpeter, Dahl, Huntington e Pzreworski.

Inicialmente, Schumpeter faz uma crítica à doutrina clássica da democracia[4] e estabelece uma mudança essencial na sua concepção. Ele nota que há uma inversão nos papéis dos eleitores e dos eleitos estabelecidos pela doutrina clássica. Nela, o modo de selecionar os governantes é secundário em relação ao papel atribuído ao eleitorado. Este tem primazia sobre aquele. Porém, o que importa agora para o sistema democrático não é mais “[...] atribuir ao eleitorado o poder de decidir sobre assuntos políticos” (SCHUMPETER, 1961, p. 326). Ao contrário, o eleitorado passa a ter um papel secundário em face da escolha dos representantes que irão, efetivamente, tomar as decisões políticas.

Desta forma, o papel desempenhado tradicionalmente pelo povo na teoria clássica da democracia passa a ser secundário nesta nova concepção. É o próprio Schumpeter (1961, p. 346) que afirma:

 

Em primeiro lugar, de acordo com o ponto-de-vista que adotamos, a democracia não significa nem pode significar que o povo realmente governa em qualquer dos sentidos tradicionais das palavras povo e governo. A democracia significa apenas que o povo tem oportunidade de aceitar ou recusar aqueles que o governarão.

 

Assim, a democracia é “[...] um sistema institucional, para tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (SCHUMPETER, 1961, p. 328). Portanto, a democracia é definida como um método de escolha dos governantes. Mais que isso, a mera existência de eleições define os regimes políticos: se há eleições, tem-se um regime democrático. Se não há, tem-se um regime não democrático[5].

Assim, a democracia é um método de escolha daqueles que irão governar, no qual políticos profissionais disputam em um processo de livre concorrência os votos do eleitorado. Para ele a democracia é o governo dos políticos[6]. Vista desta forma, esta concepção passou a denominar-se teoria competitiva da democracia.

De modo muito similar, surge a teoria democrática de Dahl (1971). Inicialmente, ele faz uma distinção entre democracia e poliarquia. Com o primeiro termo ele faz referência à democracia ideal, com o segundo, faz uma alusão à democracia real. Assim, a poliarquia se configura como uma democracia real, em larga escala e que apresenta duas dimensões: a participação e a contestação. Nas palavras do próprio Dahl (1971, p. 8) “[...] Poliarquias são regimes substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, são regimes altamente inclusivos e extensivamente abertos à contestação pública”.

A questão aqui não é meramente semântica nem tampouco de diferenciação dos planos ontológico e deontológico da democracia. A poliarquia se diferencia tanto das democracias e das repúblicas Antigas, quanto das democracias representativas modernas. As primeiras eram destituídas de grande parte das instituições requeridas em uma poliarquia. Asúltimas, ao contrário das poliarquias, possuíam sufrágio restrito. Assim, pode-se dizer que a cidadania inclusiva é um dos traços essenciais das democracias do século XX.

Quais as instituições constitutivas de uma poliarquia? Para Dahl (1971) seis instituições são fundamentais para a existência de uma democracia em grande escala. São elas: a) funcionários eleitos; b) eleições livres, justas e freqüentes; c) liberdade de expressão; d) fontes de informação diversificada; e) autonomia para as organizações; e f) cidadania inclusiva.

Portanto, uma poliarquia contempla, em primeiro lugar, a tomada de decisões políticas através de pessoas eleitas pela sociedade. Em segundo lugar, o processo de escolha deve ocorrer periodicamente, em condições de plena liberdade e de forma razoavelmente justa. Em terceiro lugar, a liberdade de expressão como um dos direitos civis basilares, deve ser garantida. Em quarto lugar, o direito às fontes de informações diversificadas deve ser assegurado. Em quinto lugar, as diversas formas de organização da sociedade civil devem ser livremente constituídas. Finalmente, todos os indivíduos adultos devem ter protegidos os seus direitos políticos.

Assim, a definição de democracia de Dahl (1971) como democracia poliarquica segue a fórmula de Schumpeter, isto é, mantém-se no âmbito de uma definição procedural mínima. Em outras palavras, permanece na esfera da democracia eleitoral. Há, no entanto, uma diferença considerável entre o Dahl de Poliarquia (1971) e o Dahl de Sobre a democracia (2001). Nesta obra, além das instituições necessárias à poliarquia,ele acresce tanto as condições essenciais quanto as condições favoráveis à mesma.

As condições essenciais à poliarquia são: o controle dos militares e da polícia por funcionários eleitos; uma cultura política e convicções democráticas; e nenhum controle estrangeiro hostil à democracia. As condições favoráveis à poliarquia são duas: uma sociedade e uma economia de mercado modernas e um fraco pluralismo subcultural.

Destarte, além das instituições necessárias à poliarquia, são essenciais algumas outras condições. O controle civil democrático sobre os militares é uma delas. Nas democracias não consolidadas, principalmente nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, há uma forte tradição de intervenção militar na política. A América Latina ilustra bem essa problemática. Nela há uma vigorosa cultura antidemocrática e antirrepublicana que coloca em risco as instituições políticas da democracia e estimula instituições políticas autoritárias. É preciso enfim que o Estado detenha plenamente a sua soberania.

Finalmente, é necessário que as instituições da poliarquia estejam fundadas sobre uma economia de mercado. Modernamente não há registro histórico da existência de regimes democráticos que não estivessem assentados em uma economia de livre mercado. Além disso, faz-se necessário que não exista forte pluralismo subcultural. Sociedades onde se verifica um alto grau de diferenças étnicas ou religiosas tendem a fragmentar-se de tal forma que comprometem não só o regime político, mas o próprio Estado.[7]

Seguindo esta tradição, Hungtinton irá consolidar a perspectiva procedural mínima da democracia. Na sua obra seminal The Third Wave (1991), ele a define como um sistema político no qual “[...] os governantes são selecionados por eleições justas, honestas, e periódicas nas quais os candidatos competem livremente pelos votos e virtualmente toda a população de adulto tem direito ao voto” (HUNTINGTON, 1991, p. 7).

Igualmente, ele irá criticar aqueles que propõem uma concepção normativa de democracia:

 

Para eles, a ‘verdadeira democracia’ significa liberdade, igualdade e fraternidade. Nela, os cidadãos possuem efetivo controle sobre a política, os governos são responsáveis, honestos e francos na política, as deliberações são racionais e fundadas em informações, há igualdade na participação e no poder, e várias outras virtudes cívicas (grifo do autor, HUNTINGTON, 1991, p. 9).

 

Diversamente, irá afirmar que a essência da democracia reside na existência de eleições periódicas, livres e justas. Pode ocorrer de governos eleitos democraticamente serem ineficientes, irresponsáveis e corruptos e, portanto, indesejáveis. No entanto, não se pode negar o caráter democrático do mesmo. Portanto, a escolha dos governantes através de eleições periódicas, livres e justas, é um traço distintivo da democracia em relação a outros regimes políticos.

Concomitantemente, reconhece a necessidade de adicionar algumas outras propriedades à democracia. Assim, é importante que os líderes políticos eleitos legitimamente governem de direito e de fato e não sejam apenas títeres de outros grupos, e que o sistema político possua instituições estáveis. Porém, não está preocupado com um maior ou menor grau de democracia, mas simplesmente com a transição de regimes não democráticos para regimes democráticos. Por isto, prefere tratar democracia e regimes não democráticos como variáveis dicotômicas. O que distingue, portanto, um regime do outro efetivamente é o modo pelo qual os governantes são escolhidos. Nas democracias, por meio de eleições competitivas. Nos regimes não democráticos[8], tendo em vista que não existem tais eleições nem sufrágio universal, por modos diversos. Em suma, apesar de expandir a definição de democracia para além das eleições, Huntington se mantém dentro de uma concepção procedural mínima de democracia.

Przeworski é mais um a fazer a defesa desta concepção. Afirma que quase todos normativamente invocam os aspectos desejáveis da política, e às vezes até mesmo os das esferas social e econômica. Assim incluem numa definição de democracia responsabilidade, igualdade, participação, justiça, dignidade, racionalidade, segurança, liberdade, etc. Contrariamente a esta visão, diz ele:

 

Eu apresento um argumento em defesa da concepção ‘minimalista’schumpeteriana de democracia, como um sistema no qual os governantes são selecionados através de eleições competitivas. Ao contrário de expectativas difundidas, não há boas razões para pensar que se os governantes são selecionados através de eleições competitivas suas decisões políticas serão racionais, seus governos serão representativos, ou a distribuição de renda será igualitária. (PRZEWORSKI, 2003, p. 12)

 

A sua defesa de uma concepção mínima da democracia contempla dois argumentos. O primeiro diz respeito ao fato da democracia resolver os conflitos de forma pacífica evitando, assim, que a mudança de governos se dê pela força e provoque violência e morte. O segundo é que o fato da democracia ser capaz de realizar esta mudança pelo voto ela retira disto as suas próprias consequências.

Portanto, Przeworski (2000) reforça esta concepção quando afirma ser a democracia, um regime que se caracteriza pelo fato de os governantes serem selecionados por meio de eleições competitivas, num cenário de cidadania inclusiva e gozo das liberdades políticas por parte dos cidadãos[9].

Antes de passar à próxima subseção, na qual será abordada a definição de democracia eleitoral, é preciso mencionar que autores como Mainwaring, Brinks e Perez-Líñan (2001), fazem uma profunda críticaàs definições procedurais mínimas que eles denominam de “subminimas”, por se restringirem aos aspectos meramente eleitorais de uma democracia.

 

2.2 Definindo democracia eleitoral

 

A organização não governamental norte-americana Freedom House tem uma importante atuação na análise e defesa da liberdade e da democracia no mundo. A sua definição de democracia[10] está alicerçada no conceito de liberdade e este, por sua vez, em duas dimensões: os direitos políticos e as liberdades civis.

A Freedom House, de agora em diante FH, define a democracia como eleitoral e/ou liberal. Uma democracia eleitoral possui as seguintes dimensões:um competitivo sistema político multipartidário; sufrágio universal adulto;eleições regularmente realizadas com base no voto secreto; razoável segurança no processo eleitoral e ausência de fraude eleitoral maciça que produz resultados que não representam a vontade do eleitor; e amplo acesso dos principais partidos políticos ao eleitorado através da mídia e através de campanhas políticas geralmente abertos.

A FH, como mencionado anteriormente, classifica a democracia a partir do conceito de liberdade. Este é definido com base em duas dimensões: direitos políticos e liberdades civis. Os direitos políticos, por seu turno, possuem três subdimensões, quais sejam: processo eleitoral; pluralismo político e participação; e funcionamento do governo. As liberdades civis, por sua vez, possuem quatro subdimensões: liberdade de expressão e de crença; direitos de associação e de organização; Estado de direito; e autonomia pessoal e direitos individuais.

A dimensão relativa aos direitos políticos fundamenta e define uma democracia eleitoral. Suas três subdimensões procuram mensurar, em linhas gerais, a existência de eleições periódicas, livres e justas para o Executivo e o Legislativo; a existência de liberdade de organização dos cidadãos para concorrerem às eleições; se a oposição tem possibilidades reais de vencê-las; se os eleitos de direito e de fato determinam as políticas do governo; se estas estão livres da corrupção sistemática; e se o governo encontra-se sob um vigoroso sistema de accountability.

A dimensão relativa às liberdades civis complementa a anterior e acresce à democracia eleitoral uma dimensão liberal que, por sua vez, reconfigura a mesma como democracia liberal. Sumariamente, estas subdimensões procuram medir as liberdades de expressão (política, religiosa, acadêmica); de organização (política, sindical, profissional); a existência de isonomia jurídica e do império da lei; e a autonomia pessoal, a igualdade de gênero e o direito de propriedade.

Assim, consoante a FH, a democracia eleitoral difere da democracia liberal, pois enquanto a primeira privilegia a dimensão eleitoral da democracia, esta última também contempla a presença de um conjunto substancial das liberdades civis.

 

2.3Mensurando as categorias de liberdade e democracia[11]

 

A FH define a liberdade como sendo a oportunidade de agir espontaneamente em uma variedade de campos fora do controle do governo e de outros centros de dominação potencial.A sua mensuração e, por consequência, da democracia, são realizadas da forma abaixo descrita.

Mensurando a liberdade:

a) Os direitos políticos, constituídos por dez indicadores, possuem escores que vão de 0 a 40, assim atribuídos: processo eleitoral (0−12); pluralismo político e participação (0−16); e funcionamento do governo (0−12).

b) As liberdades civis, constituídas por 15 indicadores, possuem escores que vão de 0 a 60, atribuídos da seguinte forma: liberdade de expressão e de crença (0−16); direitos de associação e de organização (0−12); Estado de direito (0−16); e autonomia pessoal e direitos individuais (0−16).

A partir destes escores, classificam-se os direitos políticos e as liberdades civis em sete níveis, como podem ser observados, nas tabelas 1 e 2 (ver anexo). Na tabela 3 é possível verificar a classificação dos países por seu status de liberdade que está categorizado em livre, parcialmente livre e não livre. Esta tabela é constituída pela média das duas dimensões. Assim, países livres são aqueles que possuem média entre 1,0 e 2,5. Países parcialmente livres são aqueles cujas médias se encontram entre 3,0 e 5,0. Finalmente, países não livres são aqueles que possuem média entre 5,5 e 7,0 (ver anexo).

Assim, a partir desta classificação da liberdade,a FH considera os países livres tanto democracias eleitorais quanto democracias liberais. Alguns países parcialmente livres são considerados democracias eleitorais, mas não democracias liberais. Neste caso, para ser considerado uma democracia eleitoral o valor de referências numérico de acordo com a metodologia FH faz-se necessário:

 

[...] uma pontuaçãosubtotalde 7ou mais (deuma possívelpontuação totalde 12), para alista de verificação dedireitos políticos,subcategoriaA (das três perguntas sobreo Processo Eleitoral), e uma pontuação global de direitos políticos de 20 oumais(em uma escala de pontuação totalde 40) (Freedom in the World, 2014).

 

Dessa forma, a democracia eleitoralrequer condições mínimas na dimensão dos direitos políticos. Por seu turno, a democracia liberal requer, além destas condições, um conjunto substancial de liberdades civis.

 

3FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA AMERICA LATINA

 

Esta seção analisará as fragilidades da democracia na América Latina. Para proceder à mesma, utilizar-se-ão os dados referentes ao ano de 2013, do relatório Freedom in the World 2014. Pelo caráter deste trabalho, as análises serão feitas a partir dos padrões observados nos escores das dimensões e subdimensões aqui contemplados (ver apêndice).

Tomando-se, inicialmente, a dimensão relativa aos direitos políticos e as suas subdimensões (processo eleitoral; pluralismo e participação e funcionamento do governo), pode-se observar o seguinte.

Em primeiro lugar, constata-se que dos 18 países analisados, todos, à exceção da Nicarágua e Venezuela, são democracias eleitorais, ou seja, contemplam satisfatoriamente a dimensão dos direitos políticos. Destes, nove países são classificados tanto democracias eleitorais quanto democracias liberais. São exatamente aqueles que obtiveram o status de países livres e que, portanto, contemplam satisfatoriamente não apenas os direitos políticos, mas também as liberdades civis (Chile, Costa Rica, Uruguai, Panamá, Argentina, Brasil, República Dominicana, El Salvador e Peru).

Em segundo lugar, quando se analisa cada uma das dimensões da liberdade e suas respectivas subdimensões é possível verificar o seguinte. No que concerne aos direitos políticos: a) quanto ao processo eleitoral apenas a Venezuela e a Nicarágua possuem escores inferiores a sete, escore mínimo nesta dimensão para que um país seja considerado uma democracia eleitoral; b) no que respeita à subdimensão pluralismo político e participação, nenhum país recebeu escore menor que sete(escore atribuído à Venezuela e à Nicarágua); e c) no que concerne ao funcionamento do governo,países como Argentina, Equador, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Guatemala e Venezuela apresentam escores abaixo de sete.

Portanto, uma das principais fragilidades nas subdimensões relativas aos direitos políticos diz respeito às eleições, que apesar de relativamente livres não são justas, pois de modo geral os candidatos apoiados pelo governo são favorecidos pelo jogo político. Além disso, em alguns destes países a separação de poderes é quase inexistente e o nível de corrupção é elevado.

Em relação à dimensão das liberdades civis e as suas subdimensões, pode-se observar o seguinte: a) no que se refere à liberdade de expressão e crença, todos os países se mantém em bons níveis, pois num escore total de 16 apenas a Venezuela recebeu um escore de um dígito (oito). Os demais países estão situados entre 12 e 16; b) em relação ao direito de associação e organização, países como Honduras, Nicarágua, Guatemala, Colômbia e Venezuela, receberam escores abaixo de sete; c) no que se refere ao Estado de direito, sete países receberam escores menores que sete, são eles: México, Bolívia, Equador, Honduras, Paraguai, Guatemala e Venezuela; finalmente, no que concerne à autonomia pessoal e aos direitos individuais todos os países receberam escore igual ou superior a oito.

Portanto, as principais fragilidades nesta dimensão dizem respeito aos limites impostos à liberdade de organização e a ausência do império da lei. No entanto, é preciso registrar que, embora os dados fornecidos não apresentem maior comprometimento acerca da liberdade de expressão, é notória a sua sistemática violação na Venezuela, Bolívia, Equador e até mesmo na Argentina[12].

Em terceiro lugar, uma análise das democracias latino-americanas nos dias atuais precisa levar em consideração a existência de pelo menos dois blocos de países bem distintos. O primeiro diz respeito àqueles que mantêm os valores da democracia liberal como paradigma. Poder-se-ia ilustrar esta corrente, pelo menos em boa medida, com aqueles países classificados como livres pelo FH, e, portanto, considerados democracias liberais. O segundo concerne àqueles países que aderiram ao modelo da democracia bolivariana. Tal modelo pode ser definido, de forma sintética, nas palavras de Hugo Chaves, então presidente da Venezuela, quando afirmou que era preciso construir uma:

 

[...] nova sociedade igualitária, em que não haja excluídos, um novo modelo democrático: a democracia revolucionária, a construção de uma democracia participativa, protagonista, em que o povo seja a essência e o ator fundamental da batalha política, e não uma elite que representa, entre aspas, “o povo”, a democracia representativa sempre termina sendo uma democracia de elites e, portanto, uma democracia falsa. A única democracia em que nós acreditamos é a democracia do povo, é a democracia participativa, protagonista, cheia de força popular, de impulso popular (LAPSKY; SCHURSTER; SILVA, 2013, p. 233).

 

Assim, países como a Venezuela, a Bolívia, o Equador e, mais recentemente, a Argentina, têm procurado incorporar o conceito de democracia participativa ao seu modelo. Isso passa por uma profunda transformação institucional e a supressão parcial das prerrogativas de tradicionais instituições da democracia representativa a exemplo da independência do parlamento e do poder judiciário[13]. A Venezuela é um caso emblemático, onde o governo Chaves através da realização de frequentes processos eleitorais e consultas populares atribuiu ao povo certo poder legislativo[14].

Dessa forma, a substituição das atividades ordinárias do parlamento como centro de deliberação das grandes questões políticas pela realização de referendos e plebiscitos, tem proporcionado ao poder executivo um canal de interlocução direto com o povo, deixando, dessa forma, o parlamento numa posição secundária como canal de expressão da representação popular.

Do mesmo modo, a subordinação do poder judiciário ao poder executivo, através da indicação meramente política e da pouca estabilidade dos magistrados em seus cargos (o que facilita a remoção e substituição dos mesmos), constitui um vigoroso obstáculo dos princípios norteadores de um Estado democrático: a harmonia e a independência entre os poderes.

Finalmente, nestes países tanto os direitos políticos quanto as liberdades civis têm sofrido diversas violações no que concerne às eleições livres e justas, às liberdades de expressão e organização, ao direito de propriedade. Verifica-se, ainda, uma corrupção sistêmica[15], a inexistência de independência do poder judiciário em relação ao poder executivo e a ausência do império da lei.

 

CONCLUSÃO

 

Como já mencionado na introdução deste artigo, a análise acerca da democracia tem como inevitável ponto de partida a sua definição. Destate, a grande diversidade de definições que recaem sobre a democracia requer uma maior precisão dessa categoria. No entanto, uma abordagem rigorosa de tais definições se constituiria em objeto de uma ampla discussão, o que seria aqui inapropriado. Portanto, fez-se, prontamente, a opção por uma definição procedural mínima de democracia.

Entre as definições procedurais, uma segunda opção foi feita em favor dos conceitos e das evidências empíricas da democracia fornecidos pela ONG Freedom House e pelo seu relatório anual Freedom in the World (2014). Obviamente, tais escolhas, como qualquer outra, são passíveis de vigorosas críticas a exemplo das de Mainwaring, Brinks e Perez-Líñan (2001) ou aquelas do Democracy Index feita à concepção mínima de democracia, entre elas, a da Freedom House. Contudo, uma vez feitas as escolhas, passou-se à análise das fragilidades das democracias latino-americanas.

Assim, realizada a análise comparativa da democracia nos 18 países em questão, foi possível verificar, a partir dos dados fornecidos pelo relatório Freedom in the World (2014), pelo menos três configurações distintas: a primeira contempla os países que conseguiram avançar e consolidar as instituições democráticas; a segunda contempla os países cujas instituições foram consolidadas apenas em parte; e, a terceira contempla aqueles países que apontam para um tipo de institucionalidade híbrida. Portanto, as fragilidades podem ser ordenadas de um nível mais alto a um nível mais baixo, levando-se em consideração o grau de institucionalidade dos regimes democráticos.

Finalmente, a construção da democracia na América Latina sempre traçou um percurso tortuoso. Além das relações civil-militares que sempre foram problemáticas (tema que não é objeto de análise da concepção de democracia aqui assumida), elas tiveram, nos curtos períodos de democracia eleitoral, uma parte considerável dos direitos civis e mesmo dos direitos políticos violada. Portanto, na maioria dos países latino-americanos, a democracia permanece sendo um desafio cotidiano que procura o aperfeiçoamento das suas instituições com vistas à consolidação deste regime político.

 


 

REFERÊNCIAS

 

ALBUQUERQUE, Armando. “Problemas do desenvolvimento político: as frágeis democracias latino-americanas”, In: Armando Albuquerque, Manoel Alexandre C. Belo, GONÇALVES, Rogério Magnus Varela Gonçalves, Romulo Rhemo Palitot Braga (Orgs). Desenvolvimento: aspectos sociais, econômicos e político-criminais. Curitiba: Juruá, 2012.

 

CESARINI, Paolo e HITE, Katherine (2004). “Introducing the Concept of Authoritarian Legacies”, In: Auhoritarian legacies and democracy in Latin América and southern Europe. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame.

 

DAHL, Robert A. Polyarchy: participation and opposition. New Haven: Yale University Press, 1971.

 

FIGUEIREDO, Janaína. Equador, Venezuela e Bolívia: judiciário aliado ao poder. In:O Globo. 30 de maio de 2013.

 

______. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: UnB, 2001.

 

FREEDOM HOUSE. Freedom in the world, 2014.

 

HUNTINGTON, Samuel. (1991) The Third Wave: democratization in the late twentieth century. Norman: University of Oklahoma Press.

 

LINZ, Juan J.; STEPAN, Alfred. 1996. Problems of democratic transition and conssolidation: southern Europe, south America and post-communist Europe. Baltimore e Londres, Johns Hopkins University Press.

 

MAINWARING, Scott. BRINKS, Daniel; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classificando regimes políticos na América Latina. Revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, vol. 44, n. 4, 2001, p. 645-687.

 

MIRANDA, Mario Angelo Brandão de Oliveira. “As significações e usos do conceito de democracia no ambiente político sul-americano atual e sua relevância no contexto da integração regional”, In: Igor Lapsky, Karl Schurster e Francisco Carlos Texeira da Silva (organizadores). Instituições sul-americanas no tempo presente: caminhos da integração. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.

 

PRZEWORSKI, Adam “Minimalist Conception of Democracy: A Defense”, In: The democracy sourcebook. Edited by Robert A. Dahl, Ian Shapiro, and José Antonio Cheibub. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2003, p 12-17.

 

______. ALVAREZ, Michael, CHEIBUB, José Antonio e LIMONGI, Fernando (2000). Democracy and development: political institutions and well-being in the world, 1950-1990. Cambridge: Cambridge University Press.

 

ZAKARIA, Fareed. The future of freedom. New York, W. W. Norton & Company, 2003.


 

ANEXO

 

 

 

Key%20to%20scores%20pr%20and%20cl%20ratings%20status

Fonte: Freedom House, 2014


 

APÊNDICE

 

 

 

PAÍS

Status

DP

LC

A

B

C

D

E

F

G

RP

Chile

L

1

1

12

15

12

16

11

14

15

DL

Costa Rica

L

1

1

12

15

10

16

11

13

13

DL

Uruguai

L

1

1

12

16

12

16

12

15

15

DL

Panamá

L

2

2

12

15

8

15

11

9

12

DL

Argentina

L

2

2

11

14

6

14

11

11

13

DL

Brasil

L

2

2

11

14

8

15

10

10

13

DL

República Dominicana

L

2

3

10

11

9

15

10

8

10

DL

El Salvador

L

2

3

12

14

9

15

8

9

10

DL

Peru

L

2

3

10

13

7

15

8

8

10

DL

México

PF

3

3

9

12

7

13

8

6

10

DE

Bolívia

PF

3

3

11

11

7

14

9

6

9

DE

Paraguai

PF

3

3

10

12

4

12

8

5

10

DE

Equador

PF

3

3

7

11

6

13

7

6

10

DE

Colômbia

PF

3

4

10

11

7

12

5

7

10

DE

Guatemala

PF

3

4

9

10

5

12

6

6

8

DE

Honduras

PF

4

4

7

9

4

11

6

5

9

DE

Nicarágua

PF

4

3

6

7

6

12

6

7

10

*

Venezuela

PF

5

5

5

7

2

8

4

4

8

*

Dados retirados do relatórioFreedom in theWorld, 2014.Os regimes de governo foram acrescidos.

 

LEGENDA: DP: Direitos políticos; LC: Liberdades civis; Status: L: Livre; PL: Parcialmente livre; NL: Não livre; Direitos políticos: A: Processo eleitoral; B: Pluralismo político e participação; C: Funcionamento do governo; Liberdadescivis: Liberdade de expressão e crença; E: Direito de associação e organização; F: Estado de direito; G: Autonomia pessoal e direitos individuais; RP: Regimes políticos: DL: Democracia liberal; DE: Democracia eleitoral.* Não está classificado como democracia.

 



* Docente Permanente e Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa (PPGD/UNIPÊ). Docente Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). E-mail: ArmandoAlbuquerque@yahoo.com.br

[1] Huntington (1991) denominou de “ondas de democratização” os grandes movimentos em direção à democracia em escala mundial. As três ondas ocorreram respectivamente entre os anos de 1828 e 1926, de 1943 e 1962 e de 1974 e 1989.

[2]“Legados autoritários são regras, procedimentos, normas, padrões, práticas, disposições, relacionamentos e memórias originadas em uma experiência autoritária bem definida no passado, que como resultado de configurações históricas específicas e/ou lutas políticas, sobreviveram à transição democrática e intervém na qualidade e na prática das democracias pós-autoritarismo” (HITE e CESARINI, 2004, p. 4).

[3]“Através do globo, regimes elegeram democraticamente aqueles que, com frequência foram reeleitos ou confirmados por referendo, estão ignorando rotineiramente os limites constitucionais dos seus poderes e privando os cidadãos de direitos básicos. Estes fenômenos perturbadores - visível do Peru aos territórios palestinos, de Gana à Venezuela - poderiam ser chamados 'democracia' iliberal” (Zakaria, 2004, p. 17).

[4]Schumpeter se refere, mais precisamente, às doutrinas de Rousseau, James Mill, John Stuart Mill e Jeremmy Bentham.

[5] De maneira geral adota-se a dicotomia democracia-autoritarismo.

[6]Schumpeter (1961, p. 346) “Se desejarmos enfrentar os fatos honestamente, devemos reconhecer que nas democracias modernas de todos os tipos, com exceção da suíça, a política inevitavelmente será uma carreira”.

[7] Lins e Stepan (1996, p. 17) também chamam a atenção para o que eles denominam de um problema de stateness. “Quando há profundas diferenças sobre os limites territoriais do Estado da comunidade política e profundas diferenças sobre quem tem o direito de cidadania no Estado, há o que nós chamamos um problema de stateness”.

[8] Huntington inclui entre os regimes não democráticos as monarquias absolutistas, os impérios burocráticos, as oligarquias, as aristocracias, os regimes constitucionais com sufrágio limitado, os despotismos pessoais os regimes fascistas e comunistas, as ditaduras militares, etc.

[9] Adam Przeworski (2000, p. 337) “O principal argumento em defesa da democracia é precisamente que se a disputa nas eleições é livre, se a participação é generalizada e se os cidadãos desfrutam de liberdades políticas, então os governos atuarão orientados para prover os melhores interesses das pessoas”.

[10] O Democracy Index, publicação do Economist Intelligence Unit, faz uma crítica a esta concepção mínima de democracia e propõe uma definição mais ampla que contempla cinco dimensões: processo eleitoral e pluralismo; funcionamento do governo; participação política; cultura política; e, liberdades civis (ALBUQUERQUE, 2012)

[11] Para maiores detalhes ver a metodologia da FH no relatório Freedom in the World 2014.

[12] O caso Clarín ilustra bem esta violação.

[13]No Equador, na Venezuela e na Bolívia, a Justiça é acusada pela oposição e setores da sociedade de ser um dos principais aliados do poder. Na Argentina, como no Equador, muitos juízes são substitutos, ou seja, facilmente removíveis pelo governo. No caso dos argentinos, esta categoria representa hoje cerca de 30% do total de magistrados do país. No Equador, um juiz “temporário” (com menos estabilidade ainda) esteve encarregado do processo iniciado pelo presidente Rafael Correa contra o jornal “El Universo”, no qual três diretores do diário e o jornalista Emilio Palácio (exilado nos EUA) foram condenados a três anos de prisão e multa de US$ 40 milhões pela publicação de um artigo de opinião sobre a atuação do presidente. Correa terminou perdoando-os com a pressão internacional” (FIGUEIREDO, 2013).

[14] Entre1998 e 2012 Chaves participou de oito consultas populares entre eleições e referendos

(ver Miranda In:LAPSKY; SCHURSTER; SILVA, p. 233 e 234).

[15] A Transparency International mensura anualmente numa escala de 0 a 100 a percepção da corrupção em 175 países no mundo. Quanto menor o escore, maior o nível de percepção da corrupção. Eis as respectivas classificações e escores dos 18 países aqui analisados: Venezuela, 106º e 20; Paraguai 150º e 24; Honduras 140º e 26; Nicarágua 127º e 28; Guatemala 126º e 29; R. Dominicana 123º e 29; México 106º e 34; Bolívia 106º e 34; Argentina 106º e 34; Equador 102º e 35; Panamá 102º e 35; Colômbia 94º e escore 36; Peru 83º e 38; El Salvador 83º e 38; Brasil 72º e 42; Costa Rica 49º e 53; Chile 22º e 71; Uruguai 19º e 73 (CORRUPTION PERCEPTION INDEX2013).